António Carrapato

Com o calor que está só um arjamolho geladinho nos pode salvar

Cada família italiana tem uma receita diferente de esparguete à bolonhesa. Carne de porco? Carne de vaca? As duas? Leite? Azeite? Manteiga? A multiplicidade de receitas é, paradoxalmente, o sinal que um prato é tradicional.

Faz parte dessa tradição que, no fundo, cada um faz como quer. Quanto mais versões houver, mais reclamarão que são as verdadeiras ou originais e todas as outras são erradas.

“Pode não ser assim que vem nos livros mas é assim que eu gosto e é assim que eu faço.” Esta é a atitude inteligente e criativa de quem consegue cozinhar bem.

A discussão acerca da autenticidade faz parte do prazer da cozinha.

Que triste seria se fôssemos todos robots humanos a obedecer até ao grama receitas de aplicação universal. Infelizmente isso já acontece com a ditadura popular das Bimbys, tão implantada que não temos amigos que não tenham sucumbido e tenhamos por isso ficado, literalmente, a falar sozinhos.

É divertido passar uma década ou duas a discutir o que constitui um gaspacho alentejano, um gaspacho andaluz ou um arjamolho algarvio. O meu sogro, que era de Portalegre, definia o gaspacho como alho, sal, pão, azeite e vinagre. Depois ia-se acrescentando o que se queria.

Uma coisa é certa (faz de conta): os gaspachos e arjamolhos portugueses, ao contrário dos espanhóis, abominam a utilização de varinhas mágicas, essas antepassadas das Bimbys, que reduzem tudo a um grosseiro e indistinto puré de nada e de tudo.

O arjamolho está para a cozinha estival portuguesa como o Bloody Mary para o mundo dos cocktails. Investigações recentes da gastrofísica sugerem que os Bloody Marys sabem bem quando se anda de avião por causa do sabor umami que têm, capaz de suplantar a mortandade organoléptica imposta pelo ruído dos motores.

No caso do arjamolho é a deliciosamente baixa temperatura, ocasionada pelo uso compulsivo (faz de conta) do gelo, que é capaz de fazer frente ao calor.

Há debates infindos acerca do uso de gelo ou de água gelada no arjamolho. Alguns espíritos radicais até dispensam — horror dos horrores — a água fria. Só não há quem goste do arjamolho quente, embora isso seja apenas uma questão de horas até um dos novos chefs se lembrar disso.

O arjamolho é uma sopa de água fria que sabe bem por ser um cocktail vegetal que se come com uma colher. É, por isso, essencial que a água seja a melhor possível. Sai barato fazer cubos de gelo com água do Fastio, do Luso ou qualquer outra água limpa e pouco mineralizada. O que não se quer é o sabor a cloro da água da companhia.

Sim, sim, sim: a água dos canos é de excelente qualidade. Mas tem um saborzinho mais ou menos incomodativo, conforme a zona onde se vive.

Nas outras sopas essa água é fervida. Mas no arjamolho ela é somente congelada, o que fixa mais esses gostos, quando não vai buscar outros aromas indesejáveis ao congelador.

Também não vale a pena fazer o arjamolho se o alho, o tomate, o pepino, a cebola e os orégãos não forem deliciosos sozinhos. Se um ingrediente não está perfeito, o melhor é deixá-lo de fora. O arjamolho não só não esconde os defeitos dos constituintes, como denuncia-os violentamente. Sobretudo o alho: o melhor é o de chão seco, como já aqui demonstrei.

Vamos à receita. Ponha dois dentes de alho no fundo de uma tigela. Não é preciso esmagá-los. Basta abri-los com uma faca. Junte o sal e dê umas voltas. Quando começar a comer o arjamolho pode tirar o alho: já fez o que tinha a fazer. O arjamolho perfeito não pode ser nem um bocadinho indigesto.

Junte uma cebola pequena cortada em 16 gomos. Depois um tomate sem pele, em cubinhos. Agora, se quiser, deite os cubinhos de pão alentejano. Mexa indolentemente. Deite também cubos de um pepino (o melhor é o holandês) e de um pequeno pimento vermelho.

Esmifre nos dedos uma mão cheia de orégãos secos inteiros, para soltarem os óleos e finalmente deite o azeite, o vinagre e quatro cubos de gelo. Prove e afine o sal. Está pronto. Bom arjamolho!