As nuvens mais bonitas do país estão a 1993 metros de altura, no ponto mais elevado de Portugal continental — a Torre da serra da Estrela
As nuvens mais bonitas do país estão a 1993 metros de altura, no ponto mais elevado de Portugal continental — a Torre da serra da Estrela

Da Serra da Estrela ao Alto Douro Vinhateiro: Com os pés bem assentes na serra

Andámos com os pés bem assentes na serra e a cabeça nas nuvens. Esta semana a nossa Volta a Portugal em 80 dias levou-nos dos saltos altos da Estrela aos flancos do Marão. Sempre pelas sinuosas estradas nacionais a celebrar o Outono com o dourado da paisagem do Alto Douro vinhateiro e um tawny para a sobremesa.

O que há para lá da próxima curva da estrada? É essa a curiosidade quase sôfrega que nos tem dado combustível há mais de 60 dias e atenua as fadigas de dormir em beliches, comer bifanas e sandes de presunto, lavar a roupa suja em tanques na praça pública.

É um combustível com poderosas octanas que nos leva a perseguir cada estrada secundária como se fosse o caminho para uma revelação, uma descoberta, ou, em muitos casos, um beco sem saída. Há um poema do brasileiro Manuel Bandeira que transformamos a nosso gosto —  “Que importa a paisagem, a Glória, a baía a linha do horizonte? - O que vejo é o beco.”

Daqui, da janela do nosso Citroën C4 Cactus, fiel e intrépido rocinante desta quixotesca aventura, o que vemos é a estrada — a nossa casa há mais de 11 mil quilómetros, distância que nos permitia chegar à Ásia. O mundo é um lugar que fica longe, mas Portugal também não é perto. Esta semana decidimos praticar um género de turismo que ainda não está em panfleto, aplicação para smartphone ou em orçamento do Turismo de Portugal. Podemos chamar-lhe o turismo nas nuvens.

A estrada que leva às nuvens

A Guarda é, provavelmente, a cidade do país onde melhor se pode alimentar uma paixão por nuvens. Não só por ser a cidade mais alta de Portugal, mas também porque a serra da Estrela é a maior reserva natural de nuvens bonitas em Portugal. Está-se aqui mais perto do céu. Vítor Baía conheceu primeiro a serra que pisa ao ser um dos fundadores do Clube de Montanhismo da Guarda.

Foi depois um dos pioneiros do parapente em Portugal e o grande impulsionador do desporto em Linhares da Beira. Foi precisamente o parapente que o despertou para a sua nova paixão — a meteorologia: “Estávamos muitos dias sem conseguir voar e decidi tentar fazer projecções meteorológica mais adequadas à prática da modalidade.” Ao longo dos anos, este autodidacta tem aperfeiçoado a sua técnica com uma vantagem elementar “É que eu ando lá em cima, no meio das nuvens, e isso permite-me conhecer melhor o comportamento da atmosfera.”

É esse conhecimento que faz dele, hoje, um dos meteorologistas mais requisitados por alpinistas do mundo inteiro: “Graças à tecnologia, consigo fazer previsões para os Himalaias e dizer aos alpinistas qual o melhor momento para atacarem os cumes. Durante uma década fiz as cartas meteorológicas para o meu amigo João Garcia e agora trabalho com alpinistas do mundo inteiro. É uma forma de também participar na aventura”, explica.

Nós também seguimos as suas indicações para ir ver as nuvens mais bonitas de Portugal, estão a 1993 metros de altura no ponto mais alto de Portugal — a Torre da serra da Estrela.

Antes de partirmos, tempo para trocar dez dedos de conversa com a Guarda, visitar a sua austera e vetusta Sé Catedral, conhecer António Oliveira, escultor de granito que à porta da Sé vai talhando a pedra que ele próprio recolhe na serra, para produzir estatuetas antropomórficas, ali sob aquela catedral granítica, conhecida pelo gárgula que no cimo vira o rabo para Castela. Há um humor serrano gravado na pedra secular e na boa disposição do senhor António, que há 50 anos mantém as portas abertas da mais antiga taberna da Guarda — “A Taberna do Benfica”.

É ali que bebemos a abaladiça que nos vai levar por Manteigas e por uma das mais cénicas e bonitas estradas de Portugal, que corre ao lado do vale glaciar onde o Zêzere vai ganhando forma.

Chegados ao topo da serra, vemos finalmente o grande espectáculo da dança das nuvens, que num dia de céu limpo se recortam como figuras fantásticas sobre a Torre. A serra da Estrela vive refém da sua sazonalidade da neve, das excursões ao “sku” e de uma das mais estranhas concessões de que há memória em Portugal — acima dos 1500 metros a exploração turística está entregue desde o tempo de Marcelo Caetano à mesma empresa cuja estrondosa inércia tem permitido que a serra da Estrela ainda não tenha sido transformada numa balbúrdia. Irónico, não é?  Mas não são estes assuntos terrestres que nos movem.

Seguimos as nuvens pela estrada até Seia, com paragem no Sabugueiro, a aldeia mais alta de Portugal, onde fomos conhecer Rui Laranjo, criador de cães serra da Estrela. Tem duas novas ninhadas de cachorros felpudos desta raça antiga que durante séculos acompanhou pastores e rebanhos na sua transumância. Pego num ao colo e tenho direito a levar com o chichizinho de baptismo. “É um cão muito fiel e meigo, que tanto pode servir para cão de guarda, como cão de família. Só precisa de espaço para se mover à vontade”, explica este criador de cães que exporta a maior parte da sua produção para o estrangeiro.

Descemos a serra pelas suas estradas cénicas, com uma paisagem de Outono que lhe dá uma palete de cores que faria as delícias de um pintor impressionista. Mas para celebrar as cores de Outono há outro sítio melhor. Fica mais a Norte. É o Alto Douro Vinhateiro, Património da Humanidade. É para lá que vamos.

Todo o Douro na varanda

Acordar de manhã, beber um café numa caneca antiga com a cara do Sandokan estampada e ver o Douro vinhateiro concentrado na moldura da varanda é um raro privilégio, ou melhor, é uma sorte do caneco. Estou na varanda de uma casa de aldeia. Chama-se “O Zé já dormiu aqui” e foi pelo nome que aqui vim desaguar a Celeirós do Douro, pequena aldeia do concelho de Sabrosa, o mesmo onde se supõe ter nascido Fernão Magalhães.

Daqui da janela vejo as nuvens pairar, plúmbeas e ameaçadoras, sobre o vale vinhateiro e sobre a aldeia, onde a torre sineira da igreja se ergue com o seu badalar de horas certas. Na encosta, uma adega instalada nas traseiras de um antiquíssimo solar recebe os tractores com as uvas das vindimas e uma prensa vai fazendo o seu mosto. O ar perfumado já cheira a vinho e a lareiras que se acendem.

Daqui só não se vê o rio. Para isso é preciso tomar a estrada e descer até ao Pinhão, passando pela bela aldeia de Provesende, onde se faz o melhor pão da região, apesar da fama e proveito ser do pão de Favaios.

É o maior forno a lenha do distrito, que alterna dias de pão de centeio com dias de pão de trigo. “Para contentar todos os gostos”, explica Manuel Cardoso, filho da velha padeira de Provesende, que há mais de 50 anos amassa e coze o pão neste antigo lagar de azeite. “Se trouxer a carne ou o chouriço, fazemos a bola ou cacetes com chouriço.” Tentadora proposta, mas a estrada já chama, e uma das mais belas estradas de Portugal — a que vai do Pinhão até ao Peso da Régua.

Melhor que esta estrada, só mesmo a que fica exactamente na margem oposta e que nos leva do miradouro de São Leonardo de Galafura (onde Miguel Torga descobriu inspiração para um célebre poema, ali imortalizado na parede da capela) até Covelinhos e depois borda rio até à Régua, percorrendo os monumentais vales com anfiteatro de socalcos, onde a vinha ganha agora os tons vermelhos do Outono.

É uma estrada estreita, conforme nos tinha avisado a velhota no Café Jovem. Há locais onde apenas passa um carro, mas só mesmo de barco ou de comboio se poderá bater as vistas assombrosas desta estrada cénica com primeiro balcão sobre o rio.

Deixamos a Régua com um doce rebuçado na boca e subimos às encostas do Marão, onde as nuvens pairam como um manto diáfano de nevoeiro que nos faz sentir mais perto do céu. Tão perto como um tawny que bebemos, doce, na Pousada Barão de Forrester, em Alijó. Joseph James Forrester foi uma das figuras históricas do Douro, que organizou o comércio do Vinho do Porto e dele fez aguarelas e mapas.

Um Lord Byron dos socalcos, figura romântica e empreendedora que morreu tragicamente afogado no rio que tanto amou, num naufrágio no traiçoeiro Cachão da Valeira, que poupou a vida a Dona Antónia Ferreira, a lendária “Ferreirinha”, salva graças às saias de balão que lhe permitiram flutuar até à margem.

Mais do que as figuras históricas, as lendas ou os solares, o grande património do Douro foi esculpido ao longo de séculos por mãos e suor anónimo que do xisto fez berçário do precioso bacelo. O Douro vinhateiro é um dos maiores monumentos ao trabalho e à vontade indómita do homem. É sob este céu de nuvens viajantes que nos sentimos bem na terra que pisamos.

Guia prático

Onde dormir

Pousada de Juventude - Penhas da Saúde e Alijó

Desta vez ficámos numa das mais bonitas Pousadas de Juventude de Portugal, pela sua localização — a das Penhas da Saúde — e numa das mais modernas e bem estruturadas, a de Alijó. A Pousada de Juventude das Penhas da Saúde é uma das mais antigas, mas tem agora um novo edifício com quartos duplos e uma confortável sala de estar, ler e ver a vista, que é magnífica e se estende pela encosta da serra. Em Alijó, bem no centro desta simpática vila transmontana, respira-se modernidade e bem estar. Há, como de costume, quartos múltiplos e quartos duplos com casa de banho privada, cozinha comum e simpáticas salas de estar a conversar com os outros viajantes que por ali passam.

Pousada de Juventude das Penhas da Saúde
Tel.: 275 335 375 - Email: penhas@movijovem.pt

Pousada de Juventude de Alijó
Tel.: 259 949 068 - Email: alijo@movijovem.pt

www.pousadasjuventude.pt

O Zé já dormiu aqui
Casa de turismo de aldeia em Celeirós do Douro, perto de Vila Real. Uma casa que nos faz sentir em casa. Quatro quartos, uma sala ampla e confortável, cozinha equipada e, o melhor de tudo, uma varanda e jardim privativo com uma bela vista sobre o vale vinhateiro e a aldeia. No jardim podemos colher maçãs carnudas, figos temporões ou simplesmente ficar estendidos na rede a dormir uma sesta por baixo das maçãs de Newton. O soalho range delicadamente e a casa tem os objectos que são dela e das gerações da mesma família que ali viveu durante gerações. Beber um café e comer covilhetes (pastéis típicos de Vila Real) na varanda enquanto a chuva cai nas vinhas oferece um momento único de calma e paz no coração do Douro vinhateiro.

Rua Aborrida, 114 - Celeirós do Douro
Tel.: 966393827
Email: ozejadormiuaqui@gmail.com
Preço: A partir de 60 euros consoante o número de hóspedes

Onde comer

Cova da Loba

Em Linhares da Beira, aldeia histórica e capital do parapente em Portugal, há um restaurante que combina a tradição e a inspiração da gastronomia serrana com modernidade e a criatividade. O espaço é acolhedor e sofisticado e os pratos bem pensados e melhor executados. Tudo enquadrado por uma completa garrafeira e pela simpatia do jovem proprietário, antigo presidente da Junta de Freguesia.Confiámos no menu de degustação do chef e não fomos ao engano, mas na ementa constam apelativos pratos, como lombos de truta corados com presunto e migas de tomate; borrego grelhado com emulsão de hortelã, limão e arroz ou o lombinho de novilho grelhado com batata, verde e creme de queijo da serra. Para sobremesa um folhadinho de requeijão com doce de abóbora que até estala.

Restaurante Cova da Loba
Largo da Igreja, Linhares da Beira
Tel.: 351 271 776 119
www.covadaloba.com
Preço: 25 euros

Informação
A Volta a Portugal em 80 dias com o Citroen C4 Cactus aproxima-se da suas curvas finais. Cumpridos que estão 11 mil quilómetros por estradas nacionais, três jornalistas entram nas duas últimas semanas desta aventura que correu os recantos do país. Desta vez a viagem é a correr atrás das nuvens, da Serra da Estrela ao Alto Douro Vinhateiro.