Baleal
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De Santa Cruz a Vila Praia de Âncora: Ó mar salgado...

Em 1876 Ramalho Ortigão escreveu o livro "As Praias de Portugal - Guia do Banhista e do Viajante". Na nossa Volta a Portugal em 80 Dias, deixámos o centrão do país e partimos à descoberta das praias referenciadas pelo escritor, sobretudo aquelas que classificou como obscuras. Uma boa desculpa para voltar ao litoral, que acabou por se transformar num (in)esperado encontro com o país profundo.

É difícil resistir à tentação de puxar alguns excertos do livro As Praias de Portugal - Guia do Banhista e do Viajante, de Ramalho Ortigão. Além da inquestionável qualidade, surpreende a frescura da prosa: “Guia dos homens, promotor das civilizações, revelador do universo, progenitor das ideias que determinam o abraço fraterno da humanidade em todo o mundo, o mar é ainda o mais poderoso foco, o mais abundante manancial da vida.” Ou esta: “O mar torna-nos imaginativos, faz-nos propender para a contemplação, para a ociosidade, para a vaga saudade, para a indefinida melancolia. Este estado poético é dos mais perigosos. Prosta, enfraquece, desarma o carácter. É por isso que as mulheres, à beira-mar, nos dias doces e enervantes do Outono, precisam mais do que nunca de se retemperarem na aplicação, no estudo, na actividade intelectual.” Palavras de Ramalho Ortigão, quem somos nós para contrariar?

Mais de vinte dias depois do início da Volta a Portugal em 80 dias com o Citroën C4 Cactus, dias sobretudo passados no centro/interior do país, agarrámos no livro deste incontornável nome das letras lusitanas — professor de Eça de Queirós e colega de espadas de Antero de Quental, a quem chegou a enfrentar num duelo — e partimos, também nós, rumo ao litoral. Se “o mar foi o primeiro guia da humanidade”, a literatura continua a ser um dos melhores guias de viagem e nada como passar uma semana com uma obra do século XIX e uma toalha dos chineses debaixo do braço. Não queríamos, contudo, limitar-nos a visitar as terras de veraneio escolhidas por Ortigão, mas sobretudo passar por aquelas a que, sem grandes justificações, apelidou de As praias obscuras, dedicando-lhes sumaríssimas descrições e um breve capítulo. Praias como a Assenta ou Santa Cruz, na região Oeste, São Martinho do Porto ou São Pedro de Moel, na zona central, ou a Costa Nova, Apúlia e Vila Praia de Âncora, no Norte do país.

Portugal mudou muito desde esses tempos, Vila Praia de Âncora já não fica a “hora e meia da cidade de Viana”, nem as casas na Assenta, a duas léguas de Torres Vedras, custam “de cem a trezentos réis por dia”, mas a verdade é que há ainda muito desse Portugal obscuro nos dias que correm. Todo um país por descobrir. A frase é um lugar comum, é certo. Não deixa, contudo, de constituir surpresa o elevado número de praias desconhecidas que encontrámos pelo caminho, mesmo para quem, como nós, por prazer ou em trabalho, julgava já ter percorrido os cantos a esta pequena casa sem segredos chamada Portugal. Se no Alentejo e no Algarve a maioria das praias está catalogada, inclusive as desertas, que anualmente têm direito a um sem-número de artigos em news magazines e revistas da especialidade, de Lisboa para cima parece haver sempre mais uma falésia, uma praia ou vila piscatória que poucos conhecem, a não ser aqueles que lá estão.

Não, não vou também eu fazer aqui a nossa lista/guia de locais de veraneio, muito menos dar conselhos higiénicos aos banhistas, como exemplarmente fazia Ramalho Ortigão — “o mais salutar depois do banho é um exercício moderado, um passeio a pé, de meia hora, na praia, debaixo de um chapéu de sol, com o rabo solto como usam as senhoras nas praias da Alemanha” —, contarei apenas uma pequena história. A história do meu encontro com a dona Argentina, em Vieira de Leiria. Partindo desse princípio quase incontornável de que as viagens são feitas de momentos, este entra directamente para o topo da minha pirâmide de memórias.

Dona Argentina

Tudo começou com um galanteio.

- Anda cá, meu amor, não fujas - atirou-me dona Argentina, vendedora de peixe, vendo-me fotografar e cobiçar os carapaus secos da sua bancada.

Não fugi, claro está. Não fugiria de maneira alguma — mesmo não tendo dinheiro no bolso nem sítio onde preparar os carapaus —, até porque há muito que ansiava por este encontro. Mais do que predestinado, estava programado. Não contava, ainda assim, com as consequências. Há cerca de dois anos fiz um passeio de barco no Tejo, no Ribatejo, para os lados de Salvaterra de Magos, e dei de caras com uma cultura e uma série de aldeias ribeirinhas que ignorava por completo. Casas e coloridos barcos em madeira, a maioria ao abandono, resquícios de uma comunidade de pescadores que se dedicava à pesca do sável, da enguia e da lampreia. Os avieiros, assim os baptizou Alves Redol — ele que viveu durante alguns anos com a comunidade, na aldeia da Palhota, e escreveu um romance em sua homenagem — pescadores, “ciganos do rio” que, no final do século XIX e início do século XX, deixaram as suas terras natais, essencialmente Vieira de Leiria, no concelho da Marinha Grande, virando costas a um Atlântico demasiado revolto que tanto lhes garantia o sustento como lhes tirava a vida. Um dos mais significativos movimentos migratórios registados em Portugal, rezam as crónicas. Li o romance do escritor ribatejano, regressei às aldeias e escrevi sobre o assunto mais um par de vezes, imbuído pela beleza da paisagem e riqueza dos costumes desta gente, qual cosmopolita melancólico, mas sempre sem falar com um avieiro. Até agora.

- Ó meu amor, nem me fales nisso – diz-me dona Argentina, sempre amorosa, cada vez menos vendedora. As minhas raízes estão todas por lá. As minhas e as de muita gente nesta terra. Como é que sabes o que são os avieiros? És tão novinho. Barbudo, e bonito, mas muito novinho para saber isso.

Já não havia nada a fazer. Abrira a caixa de Pandora. Dona Argentina já não estava mais comigo.

- Naquele tempo era muito duro, meu amor, muito duro. Eram precisos dezenas de homens em cada remo – disse-me ainda. Fechou os olhos e desapareceu. Já não falava, cantava, agora, baixinho, para que o passado e a dor não a ouvissem. “E quando vais para o mar/ É com coragem amor/ São queridas do pescador/ Tu vais e eu fico a rezar/ Para que voltes depressa/ E espera pelo jantar?/ A areia é a nossa mesa”. E assim continuou, com os olhos marejados de sal.

- Obrigado, meu amor, obrigado. Agora vai-te embora, meu amor. Vai lá, vai lá…

Já contei esta história mil vezes, durante esta semana, e hei-de repeti-la outras tantas, porventura. Cumpridos pouco mais dos vinte dos oitenta dias de percurso, este episódio é a prova, se preciso fosse, de que o país real não existe apenas nos confins de Trás-os-Montes, no Alentejo ou numa qualquer aldeia perdida da Beira. Portugal vem à tona quando menos se espera, sobretudo junto ao mar. 

Não se pense, contudo, que esta foi uma semana de fado e sofrimento. De Olímpio Fernandes, o barbeiro/bloguer da Figueira da Foz, que aos 74 anos continua a contar histórias e a cortar cabelos, passando pela saga familiar de dona Edine, dona da Residencial Aviz, em Peniche, até aos perceves devorados na rua e às ostras compradas na lagoa de Óbidos e comidas num parque de campismo, foram muitas as pessoas e os momentos que também poderiam ter sido chamados a estas páginas. Já para não falar de um aniversário em família e uma partida de futebol entre amigos. Um percurso da região Oeste até à ponta noroeste do país, sempre com mar no horizonte e com as palavras de Ramalho Ortigão no bolso, mesmo com o nevoeiro instalado. “Desgraçados de nós se na praia, na pequena casa isolada e tranquila, frente a frente com o austero oceano, não compreendemos de um modo novo, por algum tempo ao menos, o dever, a felicidade, a família, a responsabilidade dos nossos actos, o nosso grave destino de criaturas humanas”. Forte é a luz deste país obscuro.

GUIA PRÁTICO

Onde dormir

Pousada de Juventude de Vila Nova de Cerveira
Rua Alto das Veigas, Vila Nova de Cerveira
Tel.: 251 796 113
www.pousadasjuventude.pt
Vila Nova de Cerveira já não fica junto ao mar, mas sim de frente para o rio Minho, a dois passos de Espanha, mas é também uma boa alternativa para terminar este périplo pela costa portuguesa. Situada logo à entrada da vila, tem à disposição nove quartos duplos com WC, um quarto duplo com WC adaptado para pessoas com mobilidade reduzida e dez quartos múltiplos de quatro camas com WC. Tem também refeitório, bar, cozinha de alberguistas e uma esplanada com uma vista que se estende até ao rio. Uma excelente opção preço/qualidade.

Meeting Hostel
Inaugurado no início deste Verão, o Meeting Hostel, na Figueira da Foz, tem tudo aquilo que um hostel deve ter: bom ambiente, bom preço e uma decoração leve e contemporânea. Um projecto de família (pai e dois filhos recuperaram uma antiga casa em ruínas), que faz questão de manter o ambiente familiar.
www.meetinghostel.com

Bungalows Lands Hause
Um bungalow pode não ter o conforto de uma casa, mas tem um charme difícil de resistir. Sobretudo quando a estadia é apenas por uma ou duas noites e o parque de campismo fica situado poucos quilómetros da Nazaré, em pleno pinhal de Leiria.
www.landshause.com

Onde comer
Desta vez não sugerimos restaurantes, mas sim que, tal como nós, compre peixe directamente aos produtores, pescadores ou na banca da peixeira. Carapaus secos, ostras, perceves, a oferta é infindável.

Informação

Cumpridos mais de vinte dias de viagem, João Ferreira Oliveira, Jorge Flores e Rui Pelejão continuam a dar a Volta a Portugal em 80 dias com o Citroën C4 Cactus. Esta semana andaram pela costa, da zona Oeste até Vila Praia de Âncora, no encalço das praias de Ramalho Ortigão. Na próxima semana descerão para o Sul.

Na Internet: www.grandeturismo.com