Entrevista a Manuel Vieira
O primeiro vinho da Quinta dos Carvalhais, o Duque de Viseu, nasceu há 25 anos. Um pretexto para ouvirmos Manuel Vieira, o homem que ajudou a fazer desta propriedade da Sogrape uma referência no Dão e no país.
Manuel Vieira, hoje reformado da Sogrape, foi durante mais de duas décadas o responsável enológico da Quinta dos Carvalhais, provavelmente o projecto que mais fez pelo renascimento dos vinhos do Dão e hoje liderado por Beatriz Cabral de Almeida. Nesta entrevista, lembra que antes do 25 de Abril de 1974 só as cooperativas podiam comprar uvas na região e que apenas se valorizava o grau/quilo, razão pela qual o encepamento foi mudando ao ponto de a Touriga Nacional ter estado quase extinta. Pioneiro na forma de vinificar a casta Encruzado, Manuel Vieira arrepende-se de ter desistido da Tinta Pinheira e sublinha que o perfil dos vinhos do Dão nunca será “estilo Parker”.
Que Dão encontrou quando foi iniciar o projecto da Quinta dos Carvalhais?
Quando cheguei ao Dão, vindo do Douro, havia muito poucos estudos sobre as castas. Havia os estudos do engenheiro Alberto Vilhena [que dirigiu o Centro de Estudos Vitivinícolas do Dão entre 1958 e 1988], mas ele publicava pouco e morreu entretanto. A gente só tinha ideias vagas sobre o potencial das castas. Na altura, a região estava muito dominada pelo estado cooperativo. Antes do 25 de Abril, ninguém de fora podia vinificar no Dão. A legislação não o permitia. Só as cooperativas podiam receber uvas. Mas as cooperativas foram desenhadas para vinificarem grandes volumes de vinho. O Salazar era muito de arrumar as coisas. O Alentejo era o celeiro da nação e só devia produzir cereal; o Douro tinha o vinho do Porto; e o Dão produzia vinho de mesa. Os produtores eram pagos pelo grau/quilo, não pela qualidade das uvas. Aos poucos, a viticultura foi-se degradando. Quando cheguei, já quase não havia Touriga Nacional. O que mais havia era Jaen e Baga, que não se adaptava ao Dão. Algumas décadas antes, de acordo com os relatos de António Augusto Aguiar, a Touriga Nacional era responsável por 90% do encepamento da região.
Quando a Sogrape comprou a Quinta dos Carvalhais e abandonou as instalações de Viseu da então Vinícola do Vale do Dão, decidimos assumir o estudo das castas e começámos a plantar as vinhas com as variedades mais indicadas. Nas brancas, algumas acabaram por não mostrar grande coisa [a Assario, também conhecida como Malvasia Rei, foi uma delas]. Nas tintas, apostámos na Touriga Nacional, na Roriz, no Jaen, no Alfrocheiro e na Tinta Pinheira. Mais tarde arrancámos a Tinta Pinheira e, se calhar, não foi grande ideia. Hoje arrependo-me. Mas na altura vivia-se a febre dos vinhos com grande intensidade de cor, muito estruturados. Era a época do Robert Parker. Um vinho de cor mais aberta era posto de parte.
O Dão foi uma descoberta para si?
Eu tinha passado por lá com o meu pai, mas não conhecia nada. Foi mesmo uma descoberta. E devo dizer-lhe que demorei alguns anos a perceber a região. Os primeiros 10 anos foram muito complicados. Chovia muito e os vinhos muito estruturados que se faziam na altura não eram claramente a vocação do Dão. Os vinhos do Dão distinguem-se pela sua elegância, frescura e grande vocação gastronómica. Desanimei um pouco. Demorei algum tempo a entrar no espírito da região…
Mas depois…
Fiquei um devoto total. Um grande admirador das suas castas e da sua diversidade de terroirs. Hoje, o Dão é a região de que mais gosto. O Douro vem logo a seguir, e depois não sei [risos].
Que castas gostou mais de trabalhar? Há quem se refira a si como “o senhor Encruzado”….
O Encruzado foi a primeira descoberta que fizemos na Quinta dos Carvalhais. Já havia a percepção de que fazia grandes vinhos. Tínhamos o exemplo dos brancos feitos pelo Centro de Estudos Vitivinícolas do Dão. Mas o nosso grande contributo para o desenvolvimento da casta foi a decisão de, logo no primeiro ano da Quinta dos Carvalhais, vinificarmos o Encruzado à borgonhesa, com fermentação em barrica de carvalho. Fizemos o mesmo com outras castas brancas, mas chegámos à conclusão que a única que não se deixava dominar e comer pela barrica era o Encruzado. Decidimos apostar no Encruzado e logo em 1990, no ano em que a adega ficou concluída, fizemos o primeiro Quinta dos Carvalhais Encruzado com fermentação e estágio em barrica. Na época, havia a moda das castas estrangeiras muito aromáticas, tipo Sauvignon Blanc, e o Encruzado não encaixava nesse perfil. Era muito austera de aroma e tinha uma componente vegetal. Foi preciso entendê-la, porque é uma casta que demora muito a revelar-se. Assusta o enólogo logo a seguir à vindima. Gosta de madeira e precisa de tempo para se exprimir, mas paga com a frescura que atinge e consegue manter ao longo do tempo. E, além disso, é muito polivalente. Em Carvalhais, casou bem com a Touriga Nacional em espumante e também deu para fazer um colheita tardia.
E nas tintas?
Nas tintas tenho que falar da Touriga Nacional como a grande referência do Dão. Nasceu e adaptou-se ali. Mas varia muito de terroir para terroir. Nos Carvalhais não tinha o mesmo comportamento em todas as vinhas. Nem sempre funciona, mas é a mais fiel de todas. Dá sempre qualquer coisa. É uma casta que dá gosto trabalhar.
Houve uma outra casta marcante para mim, a Jaen. No início tive tendência para a colocar de lado, mas depois foi-se entranhando e hoje sou um grande apreciador. Se pudesse voltar atrás, também não teria arrancado a Tinta Pinheira (o Rufete do Douro). Era uma casta fora de moda e eu também embarquei na onda, e hoje arrependo-me. Hoje há espaço para vinhos diferentes, para tintos de Verão, por exemplo, e a Tinta Pinheira, tal como a Jaen, são muito boas para fazer esse tipo de vinhos. Outra casta de que gosto muito e que defenderei sempre é a Roriz, cada vez mais mal vista. Por ser muito difícil, mas é a casta que dá estrutura aos vinhos do Dão, é o seu esqueleto. Também aprecio bastante o Alfrocheiro. É muito discreta e austera e necessita de ser muito acarinhada na vinha, mas paga com juros o investimento que fazemos nela. Contribui muito para a elegância, a frescura e a longevidade dos vinhos do Dão.
Se tivesse que fazer uma vinha nova no Dão, que castas plantaria?
Nas brancas, teria que ser Encruzado, Verdelho e Malvasia. Punha também um bocadinho de Uva Cão, seguindo os conselhos do engenheiro Alberto Vilhena, para controlar o pH dos vinhos e garantir um pouco mais de acidez. Nos tintos, com certeza que plantaria Touriga Nacional, Roriz, Alfrocheiro, Jaen, e apostaria também na Tinta Pinheira, para fazer vinhos mais leves e sem madeira.
Eleja os três melhores vinhos que fez nos Carvalhais.
Não vou escolher os melhores, mas sim três dos mais simbólicos. O primeiro é o Quinta dos Carvalhais Encruzado com fermentação e estágio em barrica. Foi um vinho pioneiro no Dão e inspirou muita gente. Não tenho preferência por nenhuma colheita em especial. Gosto de todas. Outro vinho que gostei muito de fazer foi o Carvalhais Branco Especial, um lote de várias colheitas com estágio prolongado em barrica e que é engarrafado ao fim de vários anos. O primeiro juntou vinhos de 2004, 2005 e 2006. Nos tintos, podia falar dos Touriga Nacional e de alguns outros, mas saliento o Quinta dos Carvalhais Jaen 2009, por ser um vinho que saiu do caminho habitual, um vinho sem madeira e feito com uma casta que estava a ser posta de lado.