Vida em grande estilo
Há que saber distinguir um terapatife de um gigabiltre
Chego à conclusão que sofro de inumeracia. Ou inumerismo, se quiserem. Se bem que inumerismo me soa a ilusionismo. “Senhoras e senhores, respeitável público, vamos agora ficar com um fabuloso espectáculo de inumerismo!” Por isso, prefiro a tradução literal do inglês: inumeracia. Também há quem diga analfabetismo matemático. Mas isso é muito longo, primeiro que a pessoa diga ao que vem já foram abatidas mais não-sei-quantas mil árvores no mundo.
Mas, dizia eu, depois deste belo intróito em torno da designação do termo, que sofro desta maleita. Basta-me ler uma notícia de jornal para rapidamente perceber isso. Porque, por mim, o Governo tanto pode construir uma barragem por 3,7 milhões de euros como por 56 mil biliões, que é exactamente a mesma coisa. A partir de 500 mil euros perco qualquer discernimento crítico. A minha visão numérica do mundo fica completamente desfocada.
Estou completamente dependente da bondade de estranhos no que toca a operações milionárias. O que se calhar não é boa ideia. No entanto, se alguém me quiser levar à certa por um cêntimo com aqueles preços irritantes terminados em 99 cêntimos, esqueçam! Porque nessa não caio! E considero essas jigajogas económicas imorais! Mas se me disserem: “Já viste, aquela obra do Estado derrapou em mais de 5 mil milhões de euros! Não é incrível?”, eu tento fazer o ar mais indignado que consigo e digo: “Sim, isso parece-me... bastante dinheiro! Não se faz!” Mas falha-me a convicção. Porque não tenho capacidade de medir a minha indignação. Acho que devia haver a disciplina “Milhões” na escola, porque assim talvez não olhasse para este números astronómicos como boi para palácio.
Também não percebo porque ainda não inventaram uma medida comparativa para o dinheiro, como os campos de futebol para a área. É claro que continuo sem fazer ideia do que sejam 1000 campos de futebol de área ardida, mas sempre dá para perceber o enorme desperdício desportivo que vai para aí; a quantidade de campos de futebol que se podiam ter feito e não se fizeram. Para que é que esta gente quer tanta mata? Se calhar as pessoas que fazem incêndios só queriam abrir um espacinho para fazer o seu campo de futebol e depois a coisa descontrolou-se ligeiramente. Afinal, quem faz um churrasco, faz uma futebolada.
Se eu algum dia desviar dinheiro, faço questão que seja por muitos e muitos milhões. Ou mesmo triliões, ziliões! Porque, de qualquer maneira, as pessoas não percebem a dimensão da roubalheira. Hão-de sempre dizer “O que este tipo fez é uma roubalheira!” Não há sequer a megaroubalheira ou a gigaroubalheira. Nem sequer se adapta a linguagem a estes tempos de escala milionária.
A única expressão superlativada que ouço no jargão económico é “megafraude fiscal”, que nos ajuda a perceber que estamos perante uma roubalheira na ordem dos milhões de euros. Afinal de contas, há que saber distinguir entre os vários patifes. Acho que se deviam adoptar de vez os prefixos do Sistema Internacional de Unidades (SI), porque é preciso perceber que um terapatife, por exemplo, é muito pior que um gigabiltre, são três zeros a mais, é outra ordem de grandeza de malandragem. E os adjetivos e substantivos tinham obrigação de acompanhar estas diferenças. Isso ajuda-nos a situar os problemas.
Possivelmente, uma parte da falta de capacidade crítica generalizada para números grandes pode dever-se aos adjectivos e substantivos, que não estão adaptados aos tempos macroeconómicos de hoje. Já foram inventados há muitos anos, num tempo em que a dívida externa era para aí de “dois pintores” ou de “doze contos”, no máximo, e não foram devidamente actualizados. Se calhar deviam estar indexados à inflação. Devia ouvir-se nas notícias: “A qualificação de adjectivos e substantivos sofrerá este ano um agravamento de 0,3%, em linha com a taxa de inflação.”