Nélson Garrido

O pecado da ira

O pecado da ira não é daqueles que têm mais glamour, como a luxúria ou a gula, mas é dos que sinto que mais tenho de controlar no meu dia-a-dia. Especialmente desde que sou pai. Porque as crianças acrescentam uma camada extra de stress à vida. Uma camada bastante alta e fofa.

Tal como o taxista urbano perde a cabeça no trânsito, os pais perdem a cabeça no stress caseiro. Os índices de ruído e de caos à nossa volta são igualmente elevados. Bem como o sentimento de frustração e de irritação perante o constante “pára-arranca” das crianças, que não nasceram para cumprir tarefas a eito, ou o desgaste de ter de estar sempre alerta. Caos, frustração e desgaste constantes, tudo isso é comum a pais e taxistas urbanos. Acho que falta um estudo comparativo entre ambos, porque penso que se chegaria a interessantes conclusões.

E o pior é que o idílio familiar é um fenómeno tão invulgar quanto uma aurora boreal. Uma raridade pela qual devemos dar graças e sacrificar vários porcos aos deuses. Porcos grandes. Porque a tendência natural é para a entropia. Bem sei que as crianças são o elo mais fraco de uma cadeia de stress quotidiano, mas têm um talento nato para despertar o Mr. Hyde que há em nós. Em particular, quando o cérebro já está liquefeito e homogeneizado pelo alegre e prolongado convívio com elas. É nessas alturas que me surge por vezes o dilema: “Mando ou não mando um berro a esta adorável criatura?”

E é uma decisão muito difícil. Porque é tão fácil berrar e tão difícil ultrapassar todas as adversidades que se me erguem pela frente. Fazendo o balanço das coisas, o berro tem claramente tudo a seu favor. Acho que, tal como existe o alarme anti-roubo ou anti-incêndio, também devia disparar em casa das pessoas uma música calma de flautas de Pã ou de baleias, quando se sentisse que o ambiente estava a ficar perigosamente acalorado. Os sensores detectavam elevados decibéis e níveis de berraria e accionavam a música. E as pessoas já sabiam “Olha, dispararam as baleias, vamos lá ter calma.”

Enquanto isso não existe, tem de se recorrer a outros expedientes. Uma das soluções clássicas é a alternância. Qualquer pai sabe que ao fim de algum tempo a cuidar de uma criança – sim, basta uma, uma unidade de criança – precisa de substituição como no desporto. Aliás, eu acho que em todos os lares familiares deviam existir um treinador e uma equipa técnica, que levantassem a placa de substituição quando achassem que o pai devia dar lugar à mãe ou vice-versa. E diz o comentador desportivo: “O pai já estava claramente em sub-rendimento. A criança estava a fazer gato-sapato dele e já se notava algum descontrolo, após dois berros e um dedo em riste com boca a espumar de raiva. Penso que a opção do treinador foi a mais correcta, refrescando o miolo do terreno com a entrada da mãe.” “Sim, claramente, Ribeiro Cristóvão, este pai entrou bem no jogo, mas após duas horas – os jogos de parentalidade duram mais tempo – já se notava o desgaste, que se foi acentuando com o passar dos minutos. Era inevitável a sua saída.” É daqueles poucos casos em que o jogador raramente protesta por ser substituído.

Mas nem sempre é possível a substituição. E, para esses casos, os pais deviam ter um conjunto de truques na manga para evitar chegar ao grito. Devia haver cursos pós-parto, para ensinar técnicas de relaxamento. Ainda hoje me arrependo de não ter aprendido a respiração das contracções de parto. Dava-me muito jeito agora. Há quem tente pensar em imagens bucólicas para se acalmar. Mas não é bem o meu estilo. Não é a visão de um campo de papoilas que me vai serenar, quando o meu filho desata aos berros como se lhe estivessem a arrancar os rins a frio. Às vezes digo ao meu filho: “Olha, eu estou cansado e posso ser muito mau.” Como quem avisa um colega de pelotão que está prestes a pisar uma mina. Acho que devia haver panfletos específicos para pais, como por exemplo “Como lidar com o taxista urbano que há dentro de si.”

Estou a ser injusto para os taxistas. Há muitos que conseguem manter um notável equilíbrio emocional no meio do caos citadino. Conheci um taxista lisboeta que era bastante zen. E conseguia-o sem recurso a músicas calmas. Até porque passar a vida a ouvir baleias ou o “Oceano Pacífico” da RFM é meio caminho andado para dar um tiro na cabeça. Mas, dizia eu, que o taxista parecia que tinha nascido com a própria da serenidade dentro dele. Um autêntico Buda. Não havia buzinadela que perturbasse a sua descontracção. E o caminho é esse. É sermos como ele. O nosso grande líder espiritual devia ser um taxista sereno. Devíamos beber os ensinamentos dele. Estarei na primeira fila de compradores no dia em que sair o livro “Taxismo Zen”.