As paredes de Lara têm vidas dentro
Lara Seixo Rodrigues, curadora e produtora de mil e um projectos de arte urbana, liga os pontos. "Não acredito só no muro. A parede é o que permanece como memória."
Na parede de uma casa, junto à estação de Estarreja, Vhils gravou a dona Florinda e uma parte da história da apanha e descasque do arroz. No Porto, colado à estação de São Bento, André da Loba esculpiu um retrato do senhor Henrique para que o próprio se pudesse ver com as próprias mãos. Samina traçou as linhas da vida do "Senhor Viseu" no centro histórico da Covilhã e do Manuel Balaus, encarregado de teares em Coimbra. Os artistas, as pessoas e as suas memórias. Lara Seixo Rodrigues, curadora e produtora de mil e um projectos de arte urbana, liga os pontos. "Não acredito só no muro. A parede é o que permanece como memória."
Lara gosta é de se perder. E de esgravatar histórias. E de encontrar pessoas, ofícios empoeirados e tradições que ameaçam deixar de o ser. "Gostava de visitar o mundo inteiro", confessa à Fugas. "Tenho um globo onde vou anotando". Mas o seu mundo é aqui ao lado. É em Estarreja, na Covilhã e em Arganil ("nunca vi noutro local comissões de melhoramento, onde cada um dá o que pode para as coisas se fazerem"), é nas esquinas de Cascais e nas traseiras da estação de São Bento, nas entranhas do Porto. "Pedem-me um projecto, chego e digo 'mostrem-me tudo'". Eles mostram-lhe o melhor que sabem. Ela trata do resto, de reavivar e de criar memória através da arte urbana, de valorizar quem tem uma pequena grande história para contar, de encontrar um fio condutor entre equipamentos, museus, tradições e personalidades locais.
"É a história das pessoas e a sua vivência que a mim me alimenta muito. Saberes que tocas nas histórias íntimas das pessoas e que as fazes reviver. Na prática nós não inventamos nada, só fazemos o registo do que já existe. São histórias que na sua maioria estão esquecidas", conta Lara Seixo Rodrigues em pleno epicentro do ESTAU, pelo segundo ano consecutivo a trabalhar a matéria prima de Estarreja — a Maria dos Tamancos e a dona Florinda, a Loja da preciosa e a Ecoria, a história do cultivo e descasque do arroz, "um registo que não existia". "E de repente começas a aprender os cânticos e descobres que as mulheres andavam de saias arregaçadas, enfiadas na água e com sanguessugas a subirem pelas pernas acima", sublinha. "Portugal tem-me surpreendido muito. Todas essas vivências têm que ser registadas de qualquer forma".
Formada em Arquitectura e com um currículo de projectos de acção clicáveis na sua página de Facebook — vá pelos seus dedos: ESTAU, Mistaker Maker, Muraliza, Lata 65, WOOL, Kraxas, Espigar nas Gentes... —, Lara assume que transforma as cidades. "E as pessoas", completa. "Quanto mais eu souber sobre determinado local, mais sei justificar e propor como agir sobre a localidade de forma a potenciar, melhorar ou corrigir algo. A arte também tem que ter esse papel. Tento sempre escolher as paredes nos sítios certos para os artistas certos. Todos os bons festivais que acontecem lá fora também estão a seguir um caminho de intervenção social, de inclusão, de integração. Há muitos festivais em que artistas que vão pintar e fazem ali o que podiam fazer em qualquer local. Não há identificação com o local. O que é que isso pode acrescentar à cidade? Com uma curadoria cuidada e variada nós queremos construir património comunitário".
Se o mapa de Portugal começa a ficar sarapintado, esta espécie de "antropóloga sem formação" concentra-se "no Centro, de Lisboa para cima". Quantos murais têm a mão dela (e Lara já ajudou a pintar muitas paredes)? "Já devemos estar perto de 200 — se não ultrapassámos já os 200 murais", anota de cabeça a promotora e curadora de arte urbana já convidada pelo Turismo de Portugal para ser guia de um grupo de jornalistas do Benelux numa acção que pretendia promover a arte urbana enquanto produto de coesão territorial e de promoção turística.
Lara Seixo Rodrigues, a faz-tudo dos festivais de arte urbana que a própria inventa, diz-se "viciada" em conhecer a fundo os sítios por onde passa. "Vem da minha formação enquanto arquitecta". "Preciso saber em que território estou a trabalhar, qual o tecido social e humano, associativo, tudo o que compõe um território, das coisas mais básicas às mais complexas". Assim é com o trabalho, assim é com as viagens de lazer. "Eu e o meu namorado escolhemos a cidade e quando lá estamos descubro imenso até ao último minuto. Quando voltamos de férias estamos muito mais cansados do que quando vamos. Eu chego de férias para ter férias", confessa a covilhanense, que começou a viajar através das colecções de fotografias dos pais ("eles tinham uma loja de electrodomésticos e, na altura, as marcas premiavam as vendas das melhores lojas com viagens") até viajar em família rumo à recém-estreada EuroDisney, em Paris ("foi no nono ano, na Páscoa. Vimos um filme 3D com o Michael Jackson"). Neste momento tenta fazer duas ou três viagens por ano (acha "muito pouco") e confessa que todos os locais a marcam bastante. "Não tenho um tipo de cidade. Gosto de ser surpreendida. Gosto de chegar e de perceber."
Já levou artistas portugueses lá fora (nomeadamente ao Tour Paris 13 e ao Djerbahood, na Tunísia), mas é no vá-para-fora-cá-dentro que se sente realizada. Como o Espigar das Gentes, no Porto: "Contactaram-me e pediram 'Lara, queremos levar pessoas às traseiras da estação de São Bento através da arte. Pensa nisso'. E aí entra a minha necessidade de devolver à rua e às pessoas aquilo que elas me dão. Propusemos pintar nas portas as pessoas que lá estavam sempre. Há histórias sempre fantásticas de pessoas para contar". Como nas aventuras e desventuras do Lata 65, provavelmente o seu filho mais crescido — idoso, até —, fonte de "riachos lindíssimos", de vales sem rede de telemóvel, de terras com nomes característicos, de workshops (de filhoses, de colheres de pau, de...) com gente dentro e de "descobertas umas atrás das outras".
"Eu gosto de me perder. É uma excelente forma de conhecer cidades."
Já agora, se precisarem de uma dica de um bom restaurante, peçam à Lara. "Sou muito boa a recomendar restaurantes" — em Estarreja coma-se na Casa Matos. O mais provável é que por perto alguma parede vos conte uma história. Bom apetite.
Resposta rápida
Tens uma parede preferida?
A primeira. Dos ARM Collective. Na Covilhã, mesmo no centro, ao lado da igreja. Foi aí que eu percebi que era aquele tipo de projectos que eu gostava. A do Fintan Magee, também. Em Estarreja.
É verdade que querias ser cabeleireira?
Queria. Ou então ir para a tropa. A minha mãe não deixou. Disse 'não, não não, antes disso tens que tirar um curso'. E eu tirei Arquitectura. Ainda hoje corto o cabelo ao meu irmão e ao meu namorado. Gosto de manualidades, basicamente. E o meu gostinho pela parte de Sociologia e de Psicologia encaixa na profissão de cabeleireira. Ajuda a perceber a maneira de as pessoas pensarem e as suas vivências. Gosto do comportamento humano.
Onde estarás quando tiveres 65 anos?
Tenho pensado muito nisso. O meu ritmo de vida é muito acelerado. Mas tenho consciência de que faço o que gosto. Não é um trabalho. Gosto do ser humano e de potenciar o que de bom há nele. Gosto de potenciar as nossas comunidades e as nossas cidades. A arte urbana é uma moda neste momento e estou atenta ao terminar da moda e como é que posso continuar a fazer o que eu gosto. Não tenho medo de trabalhar e de sujar as mãos. Aos 65 anos espero pelo menos fazer parte do projecto A Avó Veio Trabalhar — já lá tenho vaga.