Ao ritmo das máquinas do tempo
Um passeio tique-taque que inclui o Museu do Relógio em Serpa, um Núcleo do Tempo de Santarém ou uma excepcional colecção de relógios em Lisboa. E damos um salto a algumas das mais belas torres-relógio do mundo.
Museu do Relógio, Serpa
Tique-taque-tique-taque-tique-taque. Cucu-cucu, cucu-cucu. Dong-dong-dong. São mais de 2600 relógios espalhados pelas dez alas contíguas deste antigo convento e apenas dois estão acertados com a hora local: um Atmos dourado, da Jaeger-LeCoultre (cuja botija de gás atmosférico lhe dá uma autonomia de 600 anos, segundo a fábrica suíça) e o calendógrafo que termina cada visita guiada, confirmando a hora, o dia da semana, o dia do mês e o mês em que estamos (curiosamente construído em língua portuguesa há 140 anos em França). O resultado é uma orquestra do tempo, onde a cada instante a melodia de um relógio-instrumento irrompe no compasso monótono de centenas de segundos.
O acorde inicial deste “caos” — como o apelida o actual director do museu, Eugénio Tavares d’Almeida — foi dado pelos três relógios de bolso que o pai, fundador da colecção, herdou há 40 anos de um avô. “Quando foram restaurados fizeram nascer esta paixão e rapidamente se transformaram em cinco, dez, cem e por aí fora”, conta Eugénio, apontando para as três máquinas suspensas num suporte ornamentado que se destaca numa das vitrines. A história que fez mover pela primeira vez os ponteiros deste museu, que celebra 20 anos em Abril, é apenas a inaugural de tantas outras, que Eugénio vai debitando sem hesitar à medida que vamos percorrendo os 60 expositores.
Aqui estão “relógios de bolso desde 1670 até 1900, a maioria ainda com a chave com que se dava corda, pois a coroa carapeta só foi inventada em 1850”. Ali estão os “complicações”, “criados há 150 anos” e que tinham tantos ponteiros e peças que “era uma grande complicação fazê-los” (um relógio normal teria 70 peças, estes mais de 350). Acolá os relógios de bolso despertadores que testemunham o surgimento do turismo na Europa do século XIX e, lá perto, mais de 80 máquinas criadas por Frederic Roskopf, cujo apelido entraria no calão português para definir algo de má qualidade. Os seus relógios, criados para que os mais pobres também os conseguissem comprar, eram feitos com os piores e mais baratos materiais e, por isso, “maus em termos de precisão e tão barulhentos que ninguém conseguia dormir com um no quarto”, conta o responsável.
Na mesma sala de tecto abobadado estão ainda vários relógios de parede da Boa Reguladora de Vila Nova de Famalicão, desde os Cucos (que Eugénio faz saírem da portinhola ao acelerar o tempo dos ponteiros com a mão) aos redondos “relógios Salazar”. “O Estado Novo percebeu que todos os funcionários públicos chegavam atrasados ao trabalho — os mais ricos porque diziam que o relógio se atrasava, os mais pobres porque não tinham dinheiro para comprar um —, então mandou cortar o mal pela raiz e colocar estes relógios em todas as repartições públicas”, descreve Eugénio, acrescentando que quase todos os visitantes mais velhos se recordam de vê-los nas escolas ou nos hospitais. Também os Cauny, que viviam nos pulsos da “juventude dos anos 1960 e 1970”, costumam “trazer muita nostalgia às pessoas” e “a seguir à Omega é a marca que mais” restauram, revela. O restauro de relógios, feito tanto em Serpa como no pólo de Évora (inaugurado em 2011), é a principal fonte de rendimentos do museu, que se assume como auto-sustentável.
Da oficina à exposição, uma coisa é certa: não há um único relógio que não seja mecânico. Desde o mais raro e antigo da colecção, concebido em 1630 pelo relojoeiro da casa real inglesa, Edward East, em bronze talhado (segundo os registos encontrados, só existirá um outro igual e há cerca de seis anos o Metropolitan Museum of Art, de Nova Iorque, “ofereceu meio milhão de dólares por ele” mas “nada no espólio do museu é vendável”, garante Eugénio), até modelos lançados pelas grandes marcas da actualidade, como François-Paul Journe (o único que conseguiu fazer um relógio com máquina em ouro), Patek Philippe ou A. Lange & Söhne.
Naquele que se define como “o único museu do género na Península Ibérica e um dos oito no mundo”, há ainda relógios iguais ao que Yuri Gagarin levou ao espaço em 1961, ao que Neil Armstrong usava quando pisou a lua em 1969 ou que Pablo Picasso criou para as mulheres usarem como uma pulseira escrava e “perguntarem aos cavalheiros que horas eram nos relógios”. De história em história, o museu procura fazer “um retrato da sociedade portuguesa e de alguma sociedade mundial, mostrando, igualmente, a evolução do tempo em Portugal”. Sobre a lareira acesa junto à saída, um poema de Frei Castelo Branco deixa, no entanto, o aviso: apesar de tantos relógios a marcar o tempo, há que ter muito “apreço e conta” para “não chorar, sem conta, o não ter tempo”.
Museu do Relógio – Pólo de Serpa
Convento do Mosteirinho, Serpa
Tel.: 284 543 194
Horário: de terça a sexta das 14h às 17h30; sábados, domingos e feriados das 10h às 12h30 e das 14h às 17h30 (última entrada às 17h)
Preço: 2€ (gratuito para crianças até aos 10 anos)
www.museudorelogio.com
Núcleo Museológico do Tempo, Santarém
Assim que a vislumbramos não temos dúvidas que é dela que andamos à procura: no alto da entroncada torre eleva-se uma estrutura em ferro forjado onde o sino é coroado por oito peças arredondadas, qual arco de balões esquecido numa velha festa popular. São as cabaças de cerâmica que dão nome ao edifício, um dos mais emblemáticos de Santarém, e que tinham um objectivo tão pragmático quanto poético: levar as horas aos campos em redor, funcionando como “caixas de ressonância do rebate do sino”, conta-nos Luís Mata, responsável pelo sector de investigação do Museu Municipal de Santarém, e que agora nos guia pelos três andares da torre, transformada em 1999 num pólo museológico dedicado à “memória evocativa do tempo”. O conceito é aqui reflectido no seu sentido mais lato, dividindo-se em três diferentes formas de medição.
Na primeira sala, à qual chegamos após subir a escadaria de caracol apertado (a única que foi mantida após as obras de restauro), encontramos alguns objectos evocativos da era pré-mecânica da medição do tempo, quando, lê-se Voltaire na parede alva, o sol era “o grande relógio do mundo”. Não faltam, por isso, vários relógios de sol, incluindo o que antigamente sombreava as horas em frente aos velhos Paços do Concelho de Santarém. Dois cata-ventos, a ilustração de uma clepsidra, a réplica de uma ampulheta e de uma bússola rematam o interior da Sala dos Pesos, assim denominada por ali descerem os dois pesos que faziam movimentar a máquina do relógio, instalada em 1876 na ala superior.
“À medida que o tempo passava os pesos iam descendo, enquanto a cada hora e meia hora o mecanismo disparava, fazendo ressoar o sino”, descreve Luís Mata. Há “pouco tempo” uma avaria silenciou “o coração” da torre-relógio, “uma das mais antigas do país”, e, por isso, para já tudo o que vemos é um complexo inerte de rodas dentadas, imaculadamente pintadas de dourado e verde escuro. Em redor, outros relógios mecânicos vão ilustrando a contabilização da “hora igual”, do relógio-esqueleto ao de bolso, do pé alto ao de mesa. Num deles, o pêndulo é constituído por dois frascos de mercúrio. “Um dos problemas dos mecanismos era que, com o calor, o metal contraía ou dilatava e isso fazia atrasar o relógio, então o mercúrio servia de contrapeso para essa dilatação, compensando os atrasos”, explica o historiador. “Em teoria viemos falar do tempo, que é uma coisa abstracta, e a partir daí conseguimos abordar uma série de outras temáticas, desde química, matemática ou física.”
No último piso, a Sala de Observação serve-se das janelas rasgadas sobre o casario escalabitano e as lezírias para “revelar na paisagem as marcas do tempo e promover uma reflexão filosófica sobre os vários tempos”, desde a história e arquitectura da cidade ao ritmo de cada um, materializado no passo de quem corre lá em baixo. Ao centro, a escada empinada desaparece numa pequena portinhola no tecto, de acesso ao velho sino de bronze e às icónicas cabaças. Interdito a visitantes, guia-nos apenas o olhar até à frase de Marguerite Yourcenar que se encaracola sobre as nossas cabeças: “O tempo, esse grande escultor”.
Terminamos a visita sentindo, contudo, que é o próprio edifício que nos dá a maior reflexão sobre essa capacidade transformadora do tempo. Não a sua medição artificialmente convencionada, mas o fado saudosista e assolador do passar do tempo. O tempo que faz cair frases e mancha as paredes de humidade. O tempo que estraga relógios mecânicos e tecnologias interactivas (das inovações trazidas em 2006, apenas uma funciona). O tempo da crise que deixa os objectos do passado por consertar e os projectos do futuro para adiar (a segunda fase do museu, com a exposição da colecção de relógios em arquivo, nunca saiu da gaveta). O Núcleo Museológico do Tempo é, ironicamente, uma casa à espera de melhor(es) tempo(s).
Núcleo Museológico do Tempo – Torre das Cabaças
Largo Zeferino Sarmento, Santarém
Tel.: 912 578 970
Horário: de quarta a domingo das 9h às 12h30 e das 14h às 18h (última entrada às 17h30)
Preço: Gratuito
www. museu.cm-santarem.pt
Casa-Museu Medeiros e Almeida, Lisboa
É uma colecção de relógios absolutamente excepcional, a que o empresário português António Medeiros e Almeida reuniu durante anos — são mais de 700 relógios, dos quais duzentos e poucos estão expostos na Sala dos Relógios da Fundação Medeiros e Almeida, em Lisboa. Há uma peça que, pela sua grandiosidade, se destaca: um “relógio monumental vienense” de mesa em cristal de quartzo, prata, prata dourada, lápis-lazúli, esmaltes, rubis e pedras semipreciosas, que terá sido oferecido por Luís da Baviera à imperatriz Sissi da Áustria. Este relógio, que parece um palácio de cristal encimado por um pavão, é um exemplo dos “esmaltes vienenses”, um tipo de trabalho que surgiu durante o império Austro-Húngaro, entre 1870 e 1910.
Sabe-se que a peça pertenceu à colecção do médico norte-americano Anton Meinster e que depois da morte deste, em 1965, foi vendido em leilão da Sotheby’s em Nova Iorque. Foi posteriormente comprado em Londres pelo antiquário Wolf Steinhardt, que adquiria peças para a colecção de Medeiros e Almeida. Terá sido o antiquário a ir depois a Viena tentar descobrir a origem do relógio e surgiu aí a informação que aponta para que tenha sido uma encomenda do rei Luís II da Baviera para a sua prima Sissi.
Menos grandiosa, mas também com enorme significado histórico, é outra das peças da colecção Medeiros e Almeida, um relógio de bolso da autoria do prestigiado relojoeiro Breguet, e que foi encomendado a este pelo general francês Junot. Quando Junot se suicidou, em 1813, o relógio regressou à Casa Breguet, tendo mais tarde sido oferecido ao general Arthur Wellesley, 1.º Duque de Wellington — que, por ironia, tinha combatido, à frente das tropas anglo-lusas, contra Junot em Portugal durante as Invasões Francesas, tendo-o vencido na Batalha do Vimeiro, em 1808. Divididos pela História, os dois homens acabaram unidos por um relógio. (Alexandra Prado Coelho)
Casa-Museu Medeiros e Almeida
Rua Rosa Araújo, n.º 41, Lisboa
Tel.: 213 547 892
Horário: de segunda a sexta das 13h às 17h30 e sábados das 10h às 17h30 (última entrada às 17h)
Preço: 5€ (gratuito para crianças até aos 18 anos ou durante as visitas ao sábado de manhã; o bilhete para maiores de 65 anos custa 3€)
www.casa-museumedeirosealmeida.pt
Pelo mundo
Big Ben, Londres, Reino Unido
O nome da torre-relógio mais famosa do mundo é, na verdade, o nome do seu sino principal, que nasceu da alcunha de um ilustre inglês da década de 1850, altura em que pela primeira vez ressoaram as icónicas badaladas no alto da torre principal do Palácio de Westminster. No entanto, nem aqui há consenso quanto à origem do misterioso nome, uns atribuindo a Sir Benjamin Hall, então ministro inglês das Obras Públicas, outros a Ben Caunt, famoso campeão de boxe.
Nomes à parte, o relógio de quatro faces brancas cedo se tornou mundialmente conhecido pela sua precisão (“sempre dentro da margem de um segundo”, promete o site oficial do Parlamento britânico) e a torre de ornamentos neogóticos, com 96 metros de altura, no principal símbolo da cidade. A visita ao seu interior — que sobe 334 degraus ao longo dos diferentes pisos até se vislumbrar o Tamisa atrás do gigante mostrador — está, no entanto, interdita a estrangeiros e mesmo os residentes no Reino Unido têm de contactar o deputado da sua área de residência e marcar a visita. Ainda assim, a lista de espera é de, no mínimo, “seis meses”.
Orloj, Praga, República Checa
É provável que o turista comum precise de cábulas para apreender toda a informação que o Relógio Astronómico de Praga consegue dar apenas com um mostrador: a hora local, indicada por um círculo de números romanos dourados; o antigo horário da região da Boémia (ou horas italianas), com o mostrador de dígitos árabes dourados; o horário da Babilónia, revelado pelos doze números árabes negros; o anel com os signos do Zodíaco; os trópicos de Caranguejo e de Capricórnio; a posição do sol; a posição da lua na eclíptica e a face com que se encontra; e, por último, em pano de fundo, o astrolábio (ao centro a Terra, acima do horizonte as horas do dia e abaixo a noite).
Poucos centímetros abaixo do mostrador principal — construído em 1410, sendo o mais antigo relógio do género ainda em funcionamento — encontra-se ainda uma réplica do calendário circular parcialmente destruído no final da Segunda Guerra Mundial. No entanto, é ao badalar a hora certa que um outro espectáculo começa: a estátua da Morte move-se e as duas portadas que ladeiam o anjo cimeiro abrem-se, surgindo a figura de cada um dos doze apóstolos. O cacarejar do galo dourado finaliza o espéctaculo, que decorre todos os dias entre as 9h e as 23h.
Hotel Tower, Meca, Arábia Saudita
Erguido em 2012, é actualmente o mais alto e maior relógio do mundo, erguendo-se a 530 metros do chão. A torre, a mais alta do complexo de edifícios Abraj Al-Bait, construído pelo governo saudita, tem uma altura total de 601 metros e impõe-se, colossal, sobre a Mesquita al-Haram, o lugar sagrado mais importante do Islão e principal centro de peregrinação do mundo.
O edíficio, que alberga um hotel de cinco estrelas, um Museu Islâmico e um Centro de Observação Astronómica, é encimado pelas quatro faces do relógio, cada uma com 1849 metros quadrados, sobre as quais desponta ainda um pináculo dourado com 93 metros de altura e, no topo, uma lua crescente. Na base do relógio — de mostradores brancos sobre uma estrutura de dourado barrento que muitos consideraram uma versão kitsch do Big Ben — encontra-se um miradouro, onde os visitantes podem avistar toda a planície envolvente. Milhares de luzes pintam o relógio de verde cinco vezes por dia para sinalizar cada oração diária do Islão, sendo visíveis a cerca de 30 quilómetros de distância. A construção do projecto megalómano, que integra ainda outros seis arranha-céus e demorou quase dez anos a ser construído, esteve quase sempre envolta em polémica, particularmente quando o regime saudita decidiu demolir um forte otomano do século XVIII.