Valter Hugo Mãe e as Caxinas
É a resistência dessa comunidade, habituada a construir a felicidade em cima da tragédia, que leva para os seus livros. É um caxineiro contemplativo que vê o mar da janela da cozinha e que parte para escrever. Adora os azulejos das casas e tem um argumento mudo para um filme que quer rodar na terra aonde chegou ainda miúdo.
É sábado à tarde e o sol rasga as nuvens como há muito não o fazia. O mar está mais calmo, as ondas diminuíram de tamanho nos últimos dias e há quem arrisque as primeiras mangas curtas do ano num passeio ao pé da praia. No coração das Caxinas, comunidade piscatória de Vila do Conde, há quem aproveite para lavar o carro na rua à mangueirada com as calças arregaçadas até aos joelhos ou para esfregar passeios de vassoura nas mãos. Está calor e as cordas e estendais enchem-se de roupa sacudida e esticada e os tapetes aproveitam para apanhar ar nas varandas. Numa casa de azulejos amarelados, há uma janela com jarras chinesas cheias de flores de plástico no parapeito. No vidro, os números das contagens da água e da luz afixados com fita-cola numa página arrancada de uma agenda de um ano que já passou. É sábado e as Caxinas espreguiçam-se ao sol.
Valter Hugo Mãe está em casa, mas a adaptação não foi fácil. Com dois anos e meio, sai de Angola — nasceu em Saurimo em 1971 — e instala-se com a família em Paços de Ferreira. Aos 10 anos, chega às Caxinas e percebe que as brincadeiras não são as mesmas. Deixa os amigos, perde as referências de infância. Ali não há terra para mexer e sujar as mãos nem castelos de madeira para subir. Ali há praia, há água, areia, um mar pela frente, e os braços e as pernas ainda não sabem nadar. “Não percebia os códigos”, recorda. Começa a escrever diários, poemas, sem dizer mal de ninguém, não fosse alguém encontrar-lhe os textos secretos e ficar magoado. “Sempre escrevi, desde pequeno. Se calhar, até certo ponto, o mudar de lugar, o vir para as Caxinas, foi a fractura fundamental para começar a escrever.” É um miúdo que contempla, que escreve coisas secretas. “Escrevia cartas a mim mesmo, cartas ao futuro, ao herói desconhecido que me viesse salvar e que me levasse de volta para o mundo que conhecia.” Ninguém apareceu e a adaptação demorou ano e meio.
“Sempre fui um contemplativo, um caxineiro observador.” Naquele sábado, o escritor entra nas Caxinas vestido de preto, com um boné que o protege do sol. Os cafés começam a encher-se depois do almoço. Dos dois lados das ruas, várias casas mantêm os azulejos nas fachadas, muito menos do que o escritor desejaria. Se mandasse, mandava cobrir as casas das Caxinas de azulejos dignos desse nome e impedia as modernices de revestimentos sem graça, descoloridos, sem personalidade. Os azulejos que gosta de contemplar poderão ser o tema do seu primeiro artigo para a revista que a associação cultural Bind’Ó Peixe vai estrear e publicar duas vezes por ano. O escritor faz parte dessa associação que se baptizou com um pregão usado pelas mulheres caxineiras que vendiam peixe nas ruas. Um grupo de amigos, que tantas conversas partilhou na Clave de Sol, café lá da terra, está a recuperar memórias das gentes das Caxinas e de Poça da Barca, através de fotografias, de testemunhos, para intervir artisticamente.
A senhora Maria está na varanda de sua casa de azulejos com os chinelos pretos no parapeito que secam ao sol. Atrás de si, uma representação da crucificação de Cristo, Jesus com a cruz às costas, num painel de azulejos em tons de azul. Maria tem mais de 80 anos e olha para a rua, para o lado contrário ao mar. Valter gosta dos azulejos daquela casa — para si, uma das mais bonitas das Caxinas. Por aquelas casas também há andorinhas de louça preta nas varandas e muitos santos em azulejos. Aquela gente tem fé. Aquele mar já lhe levou tantas vidas. Em 30 anos, Valter Hugo Mãe foi a vários funerais. Em Outubro de 2010, cinco pescadores das Caxinas morreram num acidente de viação em Valença. Estavam ao serviço da embarcação Fascínios do Mar, viajavam numa carrinha de nove lugares que embateu na traseira de um camião estacionado na berma da EN-13.
A terra voltou a chorar. Valter também. “A igreja das Caxinas parecia um forno, o projectar do choro era uma coisa infernal”, lembra. Não era um choro individual, era uma dor colectiva que vestia de negro uma comunidade. “É uma coisa demasiadamente colectiva. Não vais ver os outros, vais lá ver-te a ti. Não vais ver a tristeza dos outros, alguma coisa aconteceu à tua comunidade.”
O povo das Caxinas habituou-se à perda, às vidas que o mar engole sem pedir licença, mas sabe levantar a cabeça e seguir em frente. É essa persistência da comunidade piscatória que Valter Hugo Mãe transporta para os livros que escreve. “Essa resistência e uma felicidade construída em cima da tragédia, a felicidade com a consciência iminente da tragédia”, explica.
Numa das esquinas da Rua do Cordoeiro está escrito Museu do Mar à mão, em letras num vermelho desbotado pelo tempo. É o escritor contemplativo que chama a atenção para aquelas três palavras cravadas no betão. Não foi ele o autor, mas não se importaria de ter tido a ideia. Nessa mesma rua, há uma garagem com portas pintadas de um azul vibrante com duas gaiolas penduradas. É por aqui e por outras ruas que, um dia, Valter Hugo Mãe espera fazer um filme documental com as gentes que ali vivem. As autorizações para filmar estão pedidas e concedidas, falta-lhe comprar a máquina de filmar. Na cabeça, está um argumento mudo, apenas com indicações de gestos. O resto surgirá espontaneamente das personagens que melhor conhecem os cantos à casa.
Fugir para escrever
Os cadernos continuam a encher-se de palavras, frases, textos. Depois do liceu, Valter Hugo Mãe decide estudar Direito. “Para salvar o mundo, Direito era o curso dos super-heróis”, refere. Conclui a licenciatura na Universidade Moderna, faz o estágio, é advogado ano e meio. Desiste da advocacia. “Percebi que era o caminho mais longo para a salvação do mundo.” Chateia-se com a burocracia e os emaranhados da profissão. “A minha interpretação não é racional o suficiente, é demasiado emotiva para que possa perceber realmente quem é o culpado”, confessa. O fascínio pela literatura, que nunca lhe fora uma coisa estranha, aumenta de intensidade. Entra na Faculdade de Letras da Universidade do Porto numa pós-graduação em Literatura Moderna e Contemporânea para “criar bases académicas, para ter uma noção histórica das coisas”. Adorou esse tempo de aprendizagem.
Em 1996, é um poeta. Em 2004, entra no romance com O Nosso Reino, com uma criança de oito anos que olha o mundo e vê as coisas como manifestações de Deus, e inicia uma tetralogia que percorre os tempos da infância à velhice. O Remorso de Baltazar Serapião, editado em 2006, dá-lhe o Prémio José Saramago com a história de um ciumento Baltazar que morre de amor pela Ermesinda. Em 2008, apresenta O Apocalipse dos Trabalhadores das donas de casa e carpideiras profissionais Maria da Graça e Quitéria — chegou a rir-se dos diálogos que escrevia e perguntava-se se aquilo seria mesmo literatura —, e dois anos mais tarde A Máquina de Fazer Espanhóis fecha esse ciclo de vida com homem de 84 anos que entra num lar de idosos depois da morte da mulher.
A partir daqui, começa a escrever o seu nome e a primeira letra das frases em maiúsculas para não ficar catalogado como o escritor das minúsculas. Ruy Belo escreveu que nenhuma palavra deveria ter o direito de levantar a cabeça acima das outras. Valter Hugo Mãe levou a imagem à letra e optou por minúsculas numa espécie de democracia das palavras. Com maiúsculas surge então, em 2011, O Filho de Mil Homens — ou o Crisóstomo que inventa uma família quando chega os 40 anos sem filhos. No ano passado, apresentou A Desumanização. Para esta obra, a mais recente, passou várias temporadas na Islândia para contar a história de uma menina que perde a irmã gémea e se torna diferente em tudo. Usa maiúsculas, mas não reticências, implica seriamente com os três pontinhos no final das frases. “É o sinal gráfico dos palermas, dos que não sabem dizer mais nada, mas que querem que os outros adivinhem o que queriam dizer.”
Para escrever, Valter Hugo Mãe sai das Caxinas. Na sala de estar, as paredes estão cobertas de vários quadros, nos armários arruma artesanato de muitas partes do mundo, nas estantes tem livros de muitas épocas. “São tantas referências, tantas pessoas. É muito barulho, muitas estéticas juntas. Preciso de fugir”, justifica. Parte. “Quando os lugares não são nossos não comunicam, são só confortáveis.” Precisa dessa limpeza mental e vai escrever para sítios que amigos lhe oferecem ou outros para onde o convidam. E escreve, escreve muito. Por vezes, não precisa de muito tempo para compor um livro. Mas depois há revisões para fazer, decisões cruéis para tomar — apagar capítulos, matar personagens. Faz parte do processo.
Da janela da cozinha de sua casa, no Alto de Pêga, o escritor vê o mar, as Caxinas. Na entrada, tem um azulejo vermelho que informa que aquela casa também é Caxinas. Mandou-o pintar de propósito para que não restem dúvidas. Na entrada tem também um quadro que pintou — o escritor também tem uma costela de artista plástico, com um olho que se ramifica e cresce como se de um cérebro se tratasse. Lá em baixo, fica a casa da mãe, assente nas antigas dunas, onde passa dias e noites quando está em Vila do Conde. É ali que se sente protegido.
O tempo passa devagar nas Caxinas e esse sábado acordou soalheiro. Os pés de Valter conhecem aquele território. Do outro lado da rua, está a Papelaria Sónia. Ali comprou o seu primeiro livro. Quando pediu dinheiro à mãe, ela admirou-se com aquela vontade. Lá por casa, havia apenas dicionários velhos e alguns livros do Tio Patinhas que nem sequer lhe pertenciam. Valter tinha 10 anos e queria acertar contas com os fantasmas que o assustavam na casa grande da infância em Paços de Ferreira. Entrou na papelaria com o dinheiro contado, não para comprar material escolar, mas sim O Segredo do Castelo do Terror, de Hitchcock. E pensou resolver esses barulhos dos fantasmas que o assustavam em criança.
Interrupção da solidão
No percurso de Valter Hugo Mãe há duas editoras pelo caminho. Em 1999, faz parte da fundação da Quasi Edições, que então publica alguns dos nomes mais importantes do mundo literário português. Em 2006, cria a editora Objecto Cardíaco, que não tardou a ir à falência. “Os livros são bichos”, diz, justificando o nome escolhido. Hoje, não gostaria de gerir uma editora, mas sim dirigir uma colecção de poesia. Há muita coisa que outros escrevem que lhe agrada e gostaria de mostrar esses trabalhos. “Não acredito no mundo se estiver sozinho”, comenta.
Valter Hugo Mãe começa pela poesia e passa para o romance. Em 2007, recebe o Prémio José Saramago. Saramago admite que está perante um “tsunami”. E concretiza com um “tsunami linguístico, estilístico, semântico, sintáctico”. “Um tsunami no sentido do impacto, da força.” Palavras tão fortes que mexeram no coração de um caxineiro que cresceu com o mar pela frente. Os reconhecimentos, e há vários no seu percurso, sabem-lhe bem. “Os prémios são uma espécie de interrupção da solidão. Um alarido festivo. Um aceno aos leitores, como se fosse uma forma de chamar gente para o pé de nós.” Há, porém, uma conversa que não esquece. Em Leiria, em mais uma apresentação literária, um psicólogo pediu-lhe para assinar dois livros de O Filho de Mil Homens. “Disse-me que prescrevia o meu livro a todos os pacientes. Queria oferecer um livro a cada filha porque se perdesse tudo o que tinha na vida, era aquela a herança que lhes queria deixar.” Vale a pena continuar quando os livros mudam vidas. “Vale a pena salvar o mundo. Só somos decentes se quisermos isso, quem não quer melhorar o mundo é um bicho.”
Em Abril, o escritor volta a fazer as malas e a deixar as Caxinas. Andará pelo mundo a apresentar os seus livros. Pelo Brasil, por França, pelos Estados Unidos, pela Alemanha. O próximo já anda na sua cabeça. Apetece-lhe voltar a escrever sobre uma ilha. O escritor das Caxinas sente-se um homem sortudo. “Sou uma pessoa com sorte no meio do difícil que a vida é.” É escritor, tem um programa no Porto Canal, escreve em várias publicações, esporadicamente dedica-se às artes plásticas e canta no Governo — o grupo que nasce numa performance com a amiga pintora Isabel Lhano, em que decide usar a voz para cantar umas coisas nas costas do público. Nesse dia, algures em Maio de 2007, percebeu que sabe cantar. Entretanto, já escreveu letras para canções do Mundo Cão, Paulo Praça, Frei Fado Del’Rei, entre outros. E os seus livros andam a ganhar vida própria em palcos deste país pela mão de várias companhias de teatro.