Fabrice Demoulin

Ljubomir em tons de verde

O chef que não gostava de ter vegetarianos no seu restaurante decidiu abrir um restaurante… vegetariano. No Six Senses, em pleno Douro, entre jardins comestíveis, potes de fermentação enterrados na terra e pickles, Ljubomir vive uma aventura no país dos vegetais.

“Abrir um restaurante vegetariano no Douro? Estás maluco?”. Nicolas Yarnell, director do Hotel Six Senses Douro Valley, teve a reacção que qualquer pessoa teria à ideia do chef Ljubomir Stanisic. Mas este, como seria de esperar também, não se deixou impressionar. “Iá, sim, é isso, ‘bora lá”, respondeu o jugoslavo mais português da gastronomia nacional, chef do 100 Maneiras e recente estrela mediática graças ao programa Pesadelo na Cozinha, da TVI.

“E quando é que queres fazer isso?”, arriscou Nick. “Daqui a cinco dias.” E assim, no dia 31 de Julho, inaugurou o Terroir, restaurante vegetariano no Six Senses do Douro. Ljubomir e Nicolas tinham estado na Escandinávia e o chef vinha a fervilhar de ideias. Usar os produtos fresquíssimos colhidos na horta e vindos da floresta e dos melhores produtores locais, claro, mas muito mais do que isso.

O entusiasmo com o projecto é tal que este texto poderia chamar-se “as aventuras de Ljubomir no país dos vegetais”. É como se um novo mundo se tivesse aberto ao homem que no seu restaurante Bistro 100 Maneiras, em Lisboa — que acaba de ser escolhido como o restaurante favorito da revista Monocle — tem uma fotografia sua agarrado a uma cabeça de porco.

Não se assustem os carnívoros. Ljubomir não se tornou vegetariano. Continua a gostar de carne — e, sobretudo, de tudo o que são entranhas dos vários animais, e tem até um espaço de barbecue de carnes biológicas no Six Senses. Simplesmente alargou os seus horizontes. E tornou-se mais atento às questões de saúde, o que o aproximou no projecto do Six Senses, que tem no bem-estar uma das suas componentes principais.

Até este momento, a comida vegetariana era, na sua cabeça, sinónimo de “desinteressante” — no mínimo. “Fui comer a dez restaurantes vegetarianos e o que é que vi? Tofu marinado, salsichas de soja, odeio essa merda, não me entra na cabeça. Hambúrgueres de soja? Tudo vinha num buffet, não havia nada à carta, a comida era de facto má. Mas tudo depende de quem a faz. Nunca houve um restaurante feito por um chef, eram uns gajos que em casa deixavam de comer carne e peixe e abriam um vegetariano para irem com os amigos. Vinagreta para eles era azeite e vinagre batidos para pôr em cima da salada. Tem que haver um pouco mais de preocupação.”

Chegamos ao hotel do Douro no dia da inauguração do Terroir. Almoçamos no restaurante principal, o Vale Abraão (estamos na casa que deu origem ao romance de Agustina Bessa Luís e ao filme, com o mesmo nome, de Manoel de Oliveira) para comprovar que Ljubo não abandonou a carne e o peixe: berbigão com gelatina de uva moscatel; tagliatelle de lula com queijo de cabra e vaca e flores do jardim; carpaccio prensado de camarão com maionese de especiarias (ras el hanout e caril madras); sardinha, alho francês e creme de sardinha; pregado e lasanha com anis e Pernod Ricard; e franguito assado no forno com especiarias, o prato mais pedido do restaurante.

Mesmo com peixe e carne, a refeição no Vale Abraão — que terminou com uma sobremesa surpreendente, toda à base de feno e fumo, numa homenagem aos incêndios na região no ano passado — é o momento para ouvirmos Ljubomir explicar o que pretende com o Terroir e o que o levou a mudar. “Eu era um otário. Não gostava de vegetarianos, eles iam ao meu restaurante e eu dizia ‘Ó pá, vai comer para outro lado’. Só que tive um problema de saúde por causa de uma bactéria que apanhei na água em São Tomé e Príncipe e que ninguém em Portugal conseguia perceber o que era. Perdi vinte quilos, achava que tinha cancro, deixei completamente de comer.”

Passou dois meses de inferno, pensando que ia morrer. Foi nessa altura que se pôs a ler tudo o que podia sobre os efeitos da alimentação na saúde. Quando finalmente os médicos perceberam o que tinha, tomou um antibiótico e voltou a viver. Mas com uma nova consciência.

O projecto do Six Senses não podia ter chegado em melhor altura. Ljubomir está agora a seguir um curso com o médico que faz o programa para a alimentação saudável em toda a cadeia, o norte-americano Steven Gundry, e a aprender muitas coisas novas.

Gundry, autor de bestsellers na área da nutrição — o seu livro mais recente é The Plant Paradox – The Hidden Dangers in “Healthy” Foods That Cause Disease and Weight Gain (O Paradoxo das Plantas – Os Perigos Escondidos em Alimentos “Saudáveis” Que Causam Doenças e Aumento de Peso) — é defensor de uma tese que diz que um dos perigos da alimentação actual tem a ver com a ingestão de lectinas, proteínas presentes em vários vegetais e leguminosas. A tese tem levantado polémica, como acontece sempre que existe uma diabolização de um grupo particular de alimentos (Gundry criou uma lista de produtos a evitar) e o debate “serão as lectinas o novo glúten?” está aberto.

Uma das coisas novas que Ljubomir aprendeu é que os fermentados fazem bem porque contribuem para que tenhamos mais bactérias boas e um melhor funcionamento intestinal — quem conhece Ljubomir sabe que ele faz uma descrição bastante mais gráfica de tudo isto, mas, enfim, percebem a ideia. Por coincidência, ou talvez não, a Jugoslávia, país onde nasceu e de onde fugiu por causa da guerra, tem uma grande tradição de pickles e fermentados.

“Falei à minha mãe para perceber melhor como é que funcionava, ligámos à tia, receitas, bases, e tornou-se uma avalanche.” De tal forma que não é apenas no Douro, mas em todos os seus restaurantes, que Ljubomir passou a ter muitos pratos vegetarianos, pickles e fermentados.

Mas aqui é especial. Está doido para nos mostrar o seu novo brinquedo: os potes de fermentação que mandou vir da Tailândia — “como eles não fazem vidrado por dentro, o barro consegue respirar no interior” — e que enterrou (a 1,5 metros de profundidade, explica, para ter temperaturas estáveis).

Daí a umas horas, no momento da inauguração do Earth Lab (ver caixa) vai finalmente abrir as suas caixas de pickles e fermentados (couves em soro de queijo, como se faz na Europa de Leste, kimchi à maneira coreana, peixe fermentado). Os potes abrem com um som de pok! e em alguns casos os cheiros não são os mais agradáveis, mas os sabores são muito interessantes. “Estou a descobrir novos mundos, completamente.”

Um novo Ljubomir

Outra experiência que está a encantar Ljubomir é a que tem feito com os vinagres de vinho do Porto — tem no Terroir seis variedades de vinagretas para temperar as saladas. Seguimos do Earth Lab para o jardim comestível onde acompanhamos a visita guiada feita por Marta Cardoso, responsável pela sustentabilidade no hotel, que explica que, para além de todas as outras funções, estas plantas são também usadas para recolha de sementes. A ideia é que o Six Senses passe a ter um banco de sementes próprio que ajude a preservar a biodiversidade da região.

“Temos dois jardins, com muitas variedades de vegetais e frutas”, explica Marta. “E aplicamos duas regras básicas: alimentar primeiro o solo e não a planta; e plantar juntas plantas diferentes que funcionam bem em conjunto e ajudam a controlar as pragas. Além disso, fazemos rotação de culturas para proteger os nutrientes do solo.”

Sentamo-nos por fim à mesa do Terroir. Por entre as uvas, folhas de videira desidratadas e pinceladas com wasabi; depois vão chegando um falso cheesecake, com tomate e queijo; tártaro de beterraba e wasabi; um prato de variedades de tomate; gelatina de ervas com creme de ervilhas (não estão na época mas foram congeladas); tempura de cogumelos e algas com molho de caril; vegetais em molho asiático; abacate recheado com queijo; fermentados e pickles com maçãs verdes de Armamar; cevada cozinhada com amêndoas e trufas; cebolas em várias texturas; couve-flor cozinhada em ras el hanout, leite de coco e alcaparras.

E, para sobremesa, beterraba em pickle com açúcar de agave e gelado de soja transformado em leite queimado, e um gelado de ervas com açúcar de coco. O objectivo do chef é declarar guerra ao açúcar branco refinado e substituí-lo por formas alternativas de adoçar, do mel ao agave, passando pelo açúcar de coco, stevia ou de diferentes variedades de beterraba (que já são produzidas em Portugal para esse fim). Admite, contudo, que tem andado a lutar com um problema difícil de resolver sem açúcar: “Tenho dado cabo dos gelados todos. Estamos a experimentar outras coisas para tentar conseguir a estabilização.”

O trabalho desenvolvido no Six Senses já está a começar a contagiar os outros restaurantes do chef. No 100 Maneiras — que em Outubro abre num novo espaço — e no 100 Maneiras Bistro, as cartas incluem já um número muito maior de pratos à base de vegetais e a tendência é para o açúcar começar cada vez mais a ser substituído.

E isto é o novo Ljubomir, mais saudável, sim, mais calmo, mas em tudo o resto igual a si próprio. “Com esta alimentação tenho muito mais energia. Já consigo andar aos murros [no boxe, que pratica todos os dias] durante uma hora e meia.” Não há clorofila, por muita que seja, que o transforme num betinho.

Terroir
Six Senses Douro Valley
Quinta de Vale Abraão, Samodães, Lamego
www.sixsenses.com
Horário: de terça a sábado, só jantares
Preço médio: 50 euros

 

Six Senses Douro Valley: luxo sustentável

“Um hotel tem sempre muitos custos ambientais. Dizer o contrário seria mentir”, diz o britânico Nicolas Yarnell, director do Six Senses Douro Valley. Mas, continua, a cadeia Six Senses tem uma política de sustentabilidade que visa precisamente contrabalançar esses custos.

“Não estamos a beneficiar o ambiente, estamos a mitigar o nosso impacto. Do planeamento e arquitectura até ao que está no nosso prato, perguntamos sempre qual a melhor escolha que podemos fazer.” É por aí que nasce o projecto Earth Lab, o eco-center que acaba de inaugurar na unidade do Douro.

A ideia é tornar cada hotel o mais autónomo possível no que toca à alimentação — é esta a filosofia do grupo de investimento nova-iorquino Pegasus, que em 2012 comprou a Six Senses Hotels Resorts Spas. E a propriedade do Douro tem características ideais para isso. “Temos vários hectares de floresta que estamos a transformar numa floresta comestível”, explica Nick. Já há produção de cogumelos em troncos de árvore e as colmeias estão quase a chegar.

A equipa, dirigida por Marta Cardoso, responsável pela sustentabilidade, tem uma série de funções: receber todos os produtos da horta, jardim comestível e floresta, pesar e medir cada um para calcular quanto é que se está a produzir.

“A nível de ervas já somos totalmente independentes”, sublinha o director. “Desidratamos e podemos vender, dar, usar no spa [onde há workshops para ensinar a fazer, por exemplo, pasta de dentes ou champô só com produtos naturais], temos mais do que o que precisamos. Quanto aos vegetais, vamos no segundo ano e já estamos a produzir uma quantidade razoável. Ainda não tirámos o ananás do buffet de pequeno-almoço, mas lá chegaremos.”

As pesagens e medições permitem “saber o valor de mercado e estabelecer objectivos”. Que são ambiciosos: “Queremos triplicar a nossa produção anualmente.”

Mas mesmo isso será insuficiente para as necessidades do hotel, daí a importância das parcerias com produtores vizinhos que produzam biológico. “Não precisam de ser certificados, o importante é termos uma relação de confiança com eles.”

Implementar estas ideias significa que, pelo menos inicialmente, os custos são mais elevados, reconhece Nicolas Yarnell. “Serei o primeiro a defender os nossos preços um pouco altos no menu, mas é preciso ver que temos neste momento 26 chefs para um hotel que recebe 150 pessoas. Por outro lado, quanto mais produção própria tivermos, melhor, porque reduzimos os custos.”

A ideia do “luxo sustentável” vem já do primeiro hotel do grupo nas Maldivas. “Era o princípio no shoes, no news, nem televisão, nem hi-fi, tudo é pensado para ser reciclado. Há 25 anos, toda a gente pensou que estavam loucos: um hotel de luxo sem televisão? Não serviam caviar, não usavam plástico.” Mas o conceito de luxo tem vindo a mudar e hoje tudo isto “é cool”.

Outro aspecto da política do Six Senses é o fundo de sustentabilidade, composto por 5% das receitas (e não apenas do lucro) de cada hotel. Em Portugal, serve para apoiar o projecto de recuperação e valorização dos burros de Miranda do Douro e foi usado também para o restauro de uma tela do pintor renascentista português Grão Vasco que pode agora ser vista no Museu de Lamego.