PÚBLICO/Arquivo

Humana Fraternitas, em mais um aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos

Aprendemos a voar como os pássaros e a nadar como os peixes,
mas não aprendemos a conviver como irmãos
Martin Luther King

É-me cada vez mais estranho a forma como podemos deambular em torno de um tema sem nunca nos comprometermos com ele. A ciência tem esse condão, essa dimensão que surge como emancipatória mas é a mais apática forma de ser cidadania: não me misturo com o objecto estudado; sou isento – como se a isenção pudesse alguma vez existir e, acima de tudo, se fosse um valor a proclamar.

É exactamente isto que se passa com o tema da Fraternidade. É inconcebível que a 10 de Dezembro se marquem já os 68 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, com um mundo onde eles são ultrajados a todo o momento, apesar de termos conseguido ultrapassar tantas e inimagináveis fronteiras técnicas. E não me refiro apenas aos grandes conflitos bélicos e terroristas. O pior encontramo-lo no quotidiano, nos mais pequenos pormenores que nos marcam pela hipocrisia de um avanço tecnológico imenso com uma desumanização social tremenda.

No melhor dos casos, fomos capazes de criar discursos políticos que defendem a Igualdade, mas fomos incapazes do passo seguinte, o da Fraternidade. Igualdade e Fraternidade em muito pouco são coincidentes, e é a Fraternidade o alicerce, por exemplo, para não se dar a pena de morte a quem deliberadamente matou: “até” aquele que é capaz do crime mais hediondo é da mesma espécie que eu, e por ele devo nutrir sentimentos superiores que me levam a não o tratar com a animalidade e o instinto da simples sobrevivência que me ditariam que a sua eliminação é o mais seguro para o colectivo.

É aqui, na profunda opção política, que nos levou, humanidade, a abolir a pena de morte, assim como nos levou a terminar com a escravatura, que a cidadania se tem de cruzar com todas as facetas da actividade de cada um de nós. Nada pode ser apenas de um “eles” que fica com todas as culpas enquanto “nós” gozamos da tradicional crítica que “lhes” fazemos, ficando com uma aparente-consciência limpa porque não somos culpados – Foram “eles”! Cientistas ou técnicos, burocratas ou criativos, intelectuais ou proletários, dirigentes ou dirigidos, a todos os Direitos Humanos dizem respeito. Mas é tão mais fácil rever a História do ponto de vista do sofá…

É claro que poderíamos ir pelo sabor mais erudito, e inevitavelmente mais isento e confortável da Linguística e da História. Poderíamos dizer coisas das mais interessantes, caso elas não nos interpelassem e nos retirassem esse escudo de indiferença que é o afastamento que o investigador tem de ter dos sentimentos que o objecto cria em si.

Há uns anos, recebi na universidade um académico iraniano. Regressado a sua casa, escreveu-me, agradecendo a hospitalidade. Despedia-se nesse e-mail com “Brotherly Yours”. Estávamos no auge da crise e da tensão entre o Irão e os EUA acerca do programa nuclear, e esta despedida teve um sabor muito acima de todos os aspectos políticos. De resto, frequentemente me tratam por “irmão” nestes ambientes do diálogo entre e com as religiões, imagem de uma crença profunda e convicta de que somos iguais no nascimento, de que somos as mesmas “criaturas de Deus”.

Na cultura mais marcada pelo Cristianismo, hoje, para além dos grupos de natureza iniciática, apenas o mundo evangélico cultiva sistematicamente o tratamento por “irmão”. O meio cultural mais formado no catolicismo viu essa pequena palavra ser tomada pelas Ordens Religiosas, por todos os que tomaram votos de vida consagrada – por exemplo, o “frade” é o “frater”, o irmão.

Mas, felizmente, a ideia de Fraternidade laicizou-se e hoje é impossível não a compreender sem deambular pelos filósofos europeus do Iluminismo, pelos teorizadores do Direito e da Lei Natural. Sem ir a documentos fundantes como a Declaração de Direitos de 1689, de Inglaterra, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, de França, ou ainda, e a Carta de Direitos de 1791, dos então recém-nascidos Estados Unidos da América.

Mas a criação de ideias não ficou por aí. Corria o ano de 1948, num clima marcado pelo fim do grande conflito mundial, e nascia a Declaração Universal dos Direitos da Humanidade, votada a 10 de Dezembro. Na herança de tudo o que aqui tentei dizer, o seu “Preâmbulo” era claro ao fazer radicar a Fraternidade no mais simples denominador comum à Humanidade: “… o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana …” – a família comum.

Mas era no seu artigo 1.º que nascia uma das mais belas formulações de humanismo:

Artigo 1.º

“Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.”

A base, indo até esse imperativo de espécie, era o nascimento. Todos nascemos iguais. Por isso livres, e por isso devemos agir em Fraternidade uns com os outros. Tão simplesmente lógico e belo.

Contudo, a Fraternidade, como centro desse artigo 1.º, e do qual tudo parte, continua uma utopia sem data marcada. É por isso, como imperativo da acção da vida na Casa Comum, que se constituiu a Associação Humana Fraternitas que neste dia 14 terá a sua primeira iniciativa pública.

Do tecnológico e do científico, ao político e ao cultural, hoje, em tempos de extremismos e em que se procura separar o pouco que nas últimas décadas se uniu, importa recuperar e fortalecer o espírito desse documento do pós-guerra que é a Declaração Universal dos Direitos da Humanidade.

Num momento em que a memória parece já nos ter tolhido a capacidade de lembrar para não repetir os erros que conduziram à II Guerra Mundial e a todos os dramas e matanças correlacionadas, que se saia do dito sofá que nos tolhe a capacidade de agir, e que venham ao edifício dos Serviços Sociais da Câmara Municipal de Lisboa, entre as 17 e as 20 horas do dia 14, para ouvir e debater em torno desta utopia da Fraternidade com Fernando Medina, Presidente da autarquia, Henrique Monteiro, jornalista, José Magalhães, político, e Maria Manuel Mota, cientista.

Não podem ser só “eles”.

Coordenador da Área de Ciência das Religiões na Universidade Lusófona