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Os mórmons (do meu ponto de vista biográfico)

Quem trabalha com religiões e, para além disso, abraça a quase-missão de desenvolver o diálogo entre as religiões e de, ainda, tentar chegar ao máximo de população com conhecimento sólido e isento sobre o mundo das religiões, tem muitos episódios hilariantes para contar. No que respeita à minha relação com os mórmons, nunca me irei esquecer da minha incapacidade para perceber que certo ouvinte, depois de uma breve exposição minha, se referia aos mórmons: numa longuíssima questão, o que me possibilitou tentar perceber de que ele falava, perguntavam-se-me várias coisas sobre uns tais “mormões”… Com algum esforço, lá percebi a quem se referia – mórmons e não “mormões” – e lá terei respondido na medida do meu conhecimento.

Mas o meu convívio com os mórmons, os membros d’A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, vem de há uns bons aninhos, bem antes dessa transformação em “mormões”, e com uma outra situação cómica – esta de pleno direito. Não sei exactamente em que ano, mas muito no início deste milénio, recebo o convite para desempenhar um papel que desde há muito se tornou normal: ser a voz neutra, isenta, num debate com religiões. O convite vinha da Antena 3 e era para o programa de fim de tarde do Fernando Alvim. Eram convidadas duas confissões cristãs, sendo que uma delas faltou e a outra era A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, que não teve medo de se apresentar num programa eminentemente cómico…

O ambiente era descontraído, com as provocações naturais vinda do Fernando Alvim, mas num recorte de profundo bom-gosto e muito respeito. Falou-se muito, riu-se ainda mais. Foi um excelente momento em que se percebeu que é possível fazer humor, bom humor, com a religião. No final da entrevista, tive de resumir a diferença entre a doutrina mórmon e católica em pouco mais de 60 segundos… correu muito bem, e o representante mórmon agradeceu-me por uma pessoa de fora da confissão ter conseguido fazer tal síntese. Ficou uma proximidade pautada pelo respeito mútuo.

Naturalmente, ao longo dos anos, muitas vezes me cruzei com mórmons em debates e conferências, tal como muitas vezes tive de intervir nos mais variados fóruns para apresentar e explicar alguns aspectos desta confissão, especialmente devido a uma certa mitologia urbana que muitas vezes os confunde com as Testemunhas de Jeová, e os conota negativamente pela visibilidade do seu proselitismo – os “elderes” que, sempre aos pares, nos vão tentando convencer da veracidade do Livro de Mórmon.

Num olhar de História Comparada das Religiões, são vários os grandes movimentos religiosos que nascem nos EUA no século XIX e que apresentam alguns aspectos em comum. Um deles remete para o Texto Sagrado um novo olhar, com novas interpretações. Adventistas do Sétimo Dia e Testemunhas de Jeová centram esse novo olhar na questão do Fim dos Tempos, o Segundo Advento de Jesus Cristo ou o Armagedon. Os mórmons, neste ponto, aproximam-se muito mais dos Bahá’ís, nascidos na Pérsia, de dentro do Islão, ou mesmo dos Ismaelitas, muçulmanos xiitas.

Para os mórmons, o Texto Sagrado é uma realidade muito mais em aberto; se para a esmagadora maioria dos cristianismos a era da profecia tinha terminado com o Cristianismo Primitivo, para os mórmons, com o estabelecimento da correcta igreja, também a profecia volta como que a estar activa, acessível à Humanidade (esta questão da correcta igreja é fundamental, não apenas na narrativa de vida do fundador, o Profeta Joseph Smith, pois foi essa a questão que ele colocou a Jesus quando este lhe apareceu: “qual a igreja certa”; como a encontramos no facto de o nome da igreja ser “A” Igreja de Jesus… e não Igreja de Jesus...

De facto, o Presidente da Igreja é, para os membros, profeta. E é profeta especialmente no sentido em que interpreta profeticamente os textos sagrados. O contacto entre Deus e o mundo do humano não está cortado e à mercê de interpretações variadas da Bíblia; não, há uma voz autorizada que o faz. Mas mais, os mórmons abrem radicalmente a noção de texto sagrado ao trazerem para o seu corpus de textos o célebre Livro de Mórmon, um livro que segundo os seus ensinamentos terá sido passado a escrito com a experiência de cristianização da América, muitos séculos antes da chegada de Colombo.

Alterando mais que a noção de texto sagrado, os mórmons alteram todo o universo da revelação. Numa visão de total igualdade entre humanos, concebem que Jesus pode transmitir revelação, e mesmo vir à Terra, inúmeras vezes, tantas quantas julgue necessárias – muitas sem expressão em termos de criação de movimentos, sem que se saiba que tiveram lugar. Portanto, segundo a narrativa em que acreditam, Jesus não esteve apenas na Palestina e Israel, mas também na América, tendo-se aí desenvolvido o cristianismo, que depois veio a desaparecer, sendo o Livro de Mórmon a memória dessa época, transmitido a Joseph Smith através de uma revelação.

Tal como quase todas as restantes religiões, os mórmons têm interditos alimentares. Para mim, a questão do café enquanto interdito seria, neste momento, inultrapassável…. Mas, brincadeiras à parte, o campo dos interditos alimentares é mais uma das características de alguns dos grupos cristãos que nasceram no século XIX: não só vão ao judaísmo, ao Antigo Testamento, buscar parte do pacote das restrições alimentares judaicas, como as acrescentam ou justificam em dois sentidos: por um lado, o corpo é um templo de Deus, donde, como que emprestado para a vida material do espírito, pelo que deve ser tratado com o máximo respeito, pois é uma criação de Deus emprestada ao indivíduo, e não algo da sua posse; por outro lado, rejeitam tudo o que crie, quer estados alterados de consciência, como o álcool, quer tudo o que seja como que doping, alterando, mais uma vez, o que Deus colocou à disposição do indivíduo através do corpo.

Faço este texto com o pretexto de o estar a escrever aquando de uma conferência internacional na Brigham Young University, em Provo, perto de Salt Lake City, a Sião procurada pelos seguidores de Joseph Smith em meados do século XIX, cidade fundada no mais profundo do território dos EUA devido a uma perseguição sistemática de que os mórmons foram alvo – aliás, perseguição muitíssimo silenciada pelo país que se gosta de apresentar como o arauto das liberdades, começando pela religiosa.

E ao olhar de quem está de fora é interessantíssimo como esta confissão sublimou o clima de perseguição na mais vantajosa cooperação entre uma religião e a sociedade. A universidade que no nome recorda o segundo presidente da igreja, aquele que dirigiu a caminhada na fuga e na resistência contra as tropas dos EUA e levou a comunidade a instalar-se em Salt Lake City, é um instrumento de formação de alta qualidade, mostrando como a igreja quer integrar os seus membros na sociedade que a rodeia, e não afastá-los como outras confissões nascidas no século XIX preconizam, como se verifica com as Testemunhas de Jeová.

Obviamente, como quase todos os grupos religiosos, os mórmons definem parte do seu universo sagrado pela oposição entre os de dentro e os de fora. Não é possível um não-mórmon assistir às práticas que têm lugar nos templos depois de estes serem consagrados. Mas, tal como os Adventistas do Sétimo Dia, nascidos praticamente na mesma década, os mórmons desenvolvem plataformas de contacto com outras religiões e actividades de reflexão sobre a Liberdade Religiosa – são a prova de que não é pela redução ao mínimo denominador comum que se consegue o diálogo; para ele ser frutuoso, nenhuma religião pode sentir que perde parte da sua identidade. E o evento internacional em que tenho a honra e o prazer de participar, o International Law and Religion Symposium, é a demonstração disso mesmo, estando inscritos cerca de 100 participantes, grande parte como oradores, oriundos das mais variadas religiões e de quase 50 nacionalidades, reunindo, ainda, académicos, agentes jurídicos e actores políticos, para debater esse importante tema da Liberdade Religiosa nos quadros legais.

Recordo que há dois anos tive a honra de receber o convite para discursar aquando da cerimónia de consagração da capela de Santarém. O convite veio do Setenta de Área, responsável pela Igreja em Portugal, Joaquim Moreira, que mais tarde também me agraciou com o convite para estar no lançamento da primeira pedra do futuro Templo de Lisboa. Mas em Santarém, onde falei como não-mórmon que sou, e antes da consagração do espaço religioso, o meu discurso centrou-se apenas num aspecto: cidadania.

A Universidade Lusófona teve o privilégio de há poucos meses ter assinado um protoclo com A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias para acolher, como alunos, membros da igreja. Este acolhimento faz ao abrigo do Fundo Perpétuo de Educação, um fundo financeiro criado pela igreja para possibilitar os estudos aos membros que não tenham possibilidade para os suportar.

Este instrumento é apenas uma imagem do que me levou a falar de cidadania na cerimónia de consagração desse espaço religioso em Santarém. Hoje posso dizer que alguns dos meus mais brilhantes alunos são mórmons. Trabalho e rigor sempre foi aquilo a que me habituaram, reforçado com um grande sentido de justiça e uma honestidade invejável. O que eu fui verificando como dominante é o que acontece com a organização no seu todo: uma eficácia de gestão que é, naturalmente, um reforço excepcional à fé através dos frutos. Isto é, tudo se faz para que os membros aumentem a sua escolaridade, possuam cursos superiores ou profissionais, que todos tenham emprego e se sintam valorizados – é claro que dessa forma podem contribuir mais para a igreja, podemos nós dizer; mas os crentes já ficaram reforçados na sua economia doméstica, podendo agora ajudar outros membros mais necessitados.

Da mesma forma, e ao contrário de alguns movimentos nascidos no mesmo século, apesar de terem sido perseguidos por um Estado, os mórmons não demonizaram o mundo, e muito menos o Estado. Por isso, enquadram sempre a sua acção na mais estrita legalidade. Por exemplo, só vieram fazer proselitismo para Portugal quando o regime democrático foi instaurado e houve uma plena liberdade religiosa.

Parceiros sociais empenhados no crescimento dos seus membros, o seu trabalho reflete-se, obviamente no todo colectivo. A "Religião na Cidade" é isto, são os parceiros da Pólis, os que constroem, cooperam e respeitam.

Coordenador da Área de Ciência das Religiões da Universidade Lusófona