Miguel Manso/Arquivo

Uma mesquita para a Mouraria

Quando me comecei a debruçar sobre o universo da História das Religiões, o facto de, em finais do século XX, a lisboeta Mouraria ainda se chamar "mouraria", foi dos fenómenos que mais que intrigou. Expulsou-se uma população religiosa (em 1496, com os judeus), mudaram-se nomes a ruas, a Inquisição fez o seu trabalho horrendo e sistemático, mas a memória da presença islâmica continuava, apesar de tudo isso, como que marcando uma ferida que teimava em não se curar.

Por essa época, há uns 25 anos, algumas vezes fui à dita Mouraria. Nada havia dessa época distante de 500 anos. Apenas se sabia o lugar onde terá sido a Grande Mesquita da Mouraria, onde hoje está o Coleginho, primeira casa dos Jesuítas em Portugal, já depois da expulsão de muçulmanos e confisco dos bens comunitários.

Compreendo muitíssimo bem a polémica que hoje se levanta em torno das obras de uma praça que terá como uma das peças urbanísticas principais uma nova mesquita. É muito dinheiro… quem paga? Julgo que estas questões, assim como outras que têm surgido na imprensa em torno da própria noção de laicidade, são deveras importantes, mas o meu olhar segue na direcção de duas outras problemáticas.

Por um lado, há uma dimensão simbólica que acho nada ser insignificante. De facto, construindo-se, em pleno século XXI, uma mesquita na Mouraria, apenas se está a dar lugar a uma re-naturalização, a uma re-significação de um topónimo que durante meio milénio ergueu a sua memória, a tal “ferida” que a toponímia teimou em não sarar com face de cristandade.

Não sou especialmente adepto de pedidos de desculpa que já nada limpam ou sanam, mas estes gestos ajudam-nos a ganhar maturidade e espessura cívica ao reencontrar e melhor perceber a nossa história e identidade.

Por outro lado, e mais importante, o que o debate nos veio mostrar de forma clara, na luta de argumentos e de demonstração de noções de laicidade, de convívio e tolerância, é que a nossa liberdade religiosa precisa de ser trabalhada profundamente, não sendo um dado adquirido. E não é um dado adquirido porque a Liberdade, qualquer que ela seja, não se vive em abstracto: ela vive-se através das representações e das percepções que dela temos. E, hoje em dia, não me devo enganar se disser que o Islão é remetido, pela maioria da nossa população, para um campo de desconfiança, de medo, de um efectivo “choque de civilizações”.

Ora, é aqui que a cidadania precisa das instituições, especialmente das de maior proximidade ao tecido social. Se a liberdade religiosa e a laicidade do Estado estão significativamente consolidados no campo do aparato legal, o universo das práticas locais, de proximidade, precisa de não dar aos cidadãos argumentos para engrossar o campo das ideias feitas, dos preconceitos, das tais representações e percepções que quase sempre andam bem distantes da realidade.

A solução, caso a caso, das formas de apoio à construção de espaços religiosos, peca pela inexistência de um caderno de boas-práticas que garanta, não apenas às confissões, mas também aos cidadãos, que a Laicidade é garantida e que os dinheiros públicos são gastos com rigor e com equidade.

Década e meia depois de aprovada a actual Lei de Liberdade Religiosa, parece cada vez mais claro que precisamos de instrumentos mais finos que definam regras, princípios e preceitos de sã convivência com o Estado, num tempo em que não deveriam ser as entidades públicas a ajudar a acirrar um clima que já tem tanto de islamofóbico.

Afinal, vai-se construir uma mesquita onde reside uma população muçulmana, numa zona que nos remete milenarmente para essa religião, mantendo ainda o seu nome, e com dinheiros da própria comunidade e participação camarária que tem sido a corrente noutras situações.

O que há de errado? Efectivamente, diríamos que nada. Mas este caso é que está a dar brado. São as representações, as fobias e a incapacidade de olhar para lá do preconceito. Um quadro mais fino e sistematizado de boas práticas em muito ajudaria a criar um clima de maior conforto social.

É para trabalhar e reflectir sobre estas questões que no dia 16 de Julho terá lugar o seguinte debate:

Fobias e Representações do Islão
A propósito da nova mesquita na Mouraria
(16 de Julho, às 20h, no Café do Largo do Intendente)

Oradores: Faranaz Keshavjee, José Mapril e Miguel Vale de Almeida.
Moderação: Sofia Lorena. 

Esta é uma iniciativa conjunta da Área de Ciência das Religiões da Universidade Lusófona, do Grupo de Investigação Cultura, Identidades e Poder do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa e do Núcleo de Filosofia Prática do LabCom.IFP da Universidade da Beira Interior (organização: André Barata, José Neves e Paulo Mendes Pinto).

 

Coord. da Área de Ciência das Religiões da Universidade Lusófona e Director do Instituto Al-Muhaidib de Estudos Islâmicos