Religião na Cidade
António: do martírio à festa, ou a alquimia da apologia da vida
Era Portugal um jovem reino, e vivia-se por toda a Europa um forte espírito de martírio, quando viveu em Lisboa um jovem que viria a ser mais tarde conhecido como António, frei, santo desde 1232. Se o nome que escolheu evoca a figura matriz do eremitismo, a sua prática de vida lança-nos para o cosmopolitismo, para a cidade, para o contacto com o outro e não para a fuga mundi.
Mas António era peculiar, numa época também com as suas peculiaridades, algumas delas muito difíceis de entender com o apetrechamento mental que temos hoje, especialmente com os recorrentes atentados terroristas que marcam o nosso tempo, e que nos são muitas vezes apresentados com uma roupagem supostamente religiosa.
Depois dos primeiros séculos do Cristianismo, nos séculos XII / XIII, a cultura cristã ocidental passava novamente por uma fase de glorificação do martírio como forma de louvor a Deus e de afirmação poderosa da submissão do devoto à missionação – o erro do “outro” era ferramenta para a expiação própria, qual luta demoníaca e perdida que, assim, ganhava uma força como que apocalíptica.
Assim aconteceu com os célebres Mártires de Marrocos, um grupo de frades italianos da região da Toscânia, profundamente ligados a Portugal no seu processo de martírio. Na II Assembleia Geral da Ordem Franciscana, em Assis, foram eleitos como missionários para essas terras dominadas por muçulmanos, e iniciaram essa missão em Portugal, partindo depois para Sevilha, ainda em mãos muçulmanas na época.
Tal como sucede em relação aos mártires dos primeiros séculos do Cristianismo, onde a natureza por vezes verdadeiramente exótica dos milagres em torno de uma morte é sempre um desafio ao “infiel”, ao pagão, também no caso destes mártires cristãos do século XIII, a procura do martírio parece ser mesmo o desígnio que os frades procuravam, apesar das inúmeras possibilidades de vida que lhes foram dadas. O que se procurava era o choque religioso que, obviamente, nunca terminaria bem – aliás, esse final marcado com a morte era a prova do quão demoníaca era a fé dos contendentes, alimento para novas investidas, agora ainda mais cimentadas no desejo de extirpar a face da terra dessa doença.
Contudo, todos os dados e factos que nos chegaram pelas tradições escritas, por mais sólidos que ao longo dos séculos tenham parecido, movimentando crentes, fé e piedade, muito pouco parece ser factológico. É um campo de mito e de lenda onde se espraiam os desejos e as preocupações religiosas de uma época de extremos onde a busca da morte era muitas vezes a única via para um quadro quotidiano positivo, um sentido superior para a vida.
Parece que os missionários se dirigiram a Coimbra, grande centro teológico e cultural da época, onde D. Urraca lhes terá dado guarida. Num misto de fé e de misticismo, a rainha suplica aos frades que lhe revelem o momento da sua morte. Relutantes, acabam por predizer que a vida de D. Urraca apenas chegaria ao seu termo quando de Marrocos os cristãos trouxessem a Coimbra os seus corpos martirizados – este era, claramente, o objectivo: atingir o estatuto de mártir.
Ora, nesta estadia em Coimbra, o jovem referido no primeiro parágrafo, Fernando de Bulhões, terá ouvido as prédicas destes frades no mosteiro de Santa Cruz, o que em muito lhe influenciou a vida. Mais o terá marcado o regresso, já como “relíquias”, dos seus restos mortais, depois de conseguido o intento: terem-se tornado mártires.
No que respeita ao curto resto da vida destes frades, ela dava uma imensa narrativa em torno da intolerância e das formas de acirrar o conflito, de como é possível fazer tudo para se ser morto. Numa época de cruzadas, de recriação e consolidação das ideias de infiel e de herege, o cristianismo ocidental lançava-se numa verdadeira, e aqui literal, caça às bruxas, que nos mostra todos os matizes da perseguição e luta religiosa hostil (Cruzadas contra o Islão, guerra contra os Cátaros, Inquisição e reforço das medidas contra os judeus, crescente demonização da mulher com a sua assimilação a práticas demoníacas, etc).
Foi este, irónica e inesperadamente, o tempo e o exemplo que terá levado o jovem Fernando a querer ir também para Marrocos evangelizar ou, ao espírito da época, ser mártir. É-nos difícil imaginar o frei António, seja ele de Pádua ou de Lisboa, a ser um fundamentalista radical que procura o confronto religioso em terras dominadas por outra religião para ser morto e, com isso, obter a salvação. Mas sim, era esse o quadro.
Mas a ironia não se fica pela tão grande diferença que a cultura popular nos criou entre o que imaginamos terem sido os referidos Mártires de Marrocos e o bonacheirão e brincalhão Santo António. Se a festa litúrgica de uns tem lugar a 16 de Janeiro, data da morte colectiva, numa época de frio, de morte da natureza, o santo paduano-alfacinha assentou arraiais festivos a 13 de Junho, dia em que faleceu, uma data muito próxima do solstício de Verão, o máximo da afirmação da vida.
A história da vida deste santo católico é marcada por alguns revezes, sendo o primeiro o dito desejo de missão em terras islâmicas. Uma tempestade afasta-o de África e transforma-se o dito empenhado missionário em grande orador, agora, próximo de Francisco de Assis, e com incumbências que lhe granjearão fama até aos dias de hoje como Doutor da Igreja. Evangeliza, sim, mas não se torna em mártir que valoriza a morte como salvação.
Mas o mais interessante da vida de António reside na sua mitologia, na forma como os meios populares pegaram nesta figura e a catapultaram para uma das marcas mais fortes da presença portuguesa e mesmo cristã no mundo sendo, talvez, um dos santos católicos mais venerados em todos os continentes, não como radical opressor, mas como imagem de humanidade.
A força de Santo António junto das populações não reside, nem nos conteúdos teológicos que o levaram a esse grupo restrito dos Doutores da Igreja, nem no desejo de martírio que o terá levado a buscar terras de África. O António dos arraias, dos tronos em que se apresenta com o alegre menino ao colo, é uma figura de uma simples humanidade que nos desarma.
Profundamente venerado pela ordem religiosa que adotou, canonizado quase em vida, tal como acontecera a Francisco de Assis, António centra em si uma devoção popular de uma intensidade imensa, como que criando duas figuras sacras dentro de um mesmo nome e memória: o Doutor e o Pregador, que muitas vezes recorre à ascese, versus o frade bonacheirão e santo humano que é amparo de aflitos e motor de festejos populares onde a festa e o folguedo são parte inquestionável, muitas vezes mesmo com um tom brejeiro alimentado pelas lendas das matreirices do jovem frade.
E é nesta situação que se dá a alquimia que nos transporta para a actual noção de martírio, dando-nos os dados de um verdadeiro laboratório de humanidade: como foi possível transformar em figura tutelar de festas e alegria, uma personagem religiosa que em muito nos poderia remeter para a intolerância?
De facto, Fernando de Bulhões, ao aderir a uma forma de vida consagrada, permitiu-nos aceder a um Santo António culto, orador afamado, mas também brincalhão. O martírio pela entrega da vida é substituído no horizonte popular pela afirmação dessa mesma vida naquilo que ela tem de mais simples: a alegria momentânea. À intolerância religiosa sobrepõe-se a religião que se liberta da teologia e se torna em mundivivência da afirmação do quotidiano.
Naturalmente, a imagem de António, na sua dimensão de santo aclamado pela população, o santo subito, tem, ano após ano, uma bengala que o revivifica: a data da sua morte cola os seus festejos aos das figuras ligadas à ciclicidade da vida, dos ritmos sazonais onde em Junho impera a vontade de tudo ver frutificar. É assim o mundo que nos abre o solstício, com casamentos, com festas e com a afirmação da abundância, desde tempos imemoriais onde os monoteísmos ainda não tinham sido pensados na máquina de alquimia que é a evolução das ideias.
António, Santo popular de um sem-número de práticas nada católicas, é a imagem da vida, da festa, da abundância, do convívio, da comunidade. É esta a alquimia que temos de recordar neste Junho em que à Europa faz falta um grande solstício que afirme os valores que nestes dias Alfama, bairro com nome herdado da presença islâmica, pratica até mais não poder.
Do martírio à festa, temos um caminho de bom-senso que é o maturar de milhares de anos de lutas e de guerras em que a populaça, sem aceso a grandes teorizações, sem teologias, nem patrísticas, percebeu o fundamental: façamo-nos irmãos no encontro, na partilha, antes que nos digam que temos de matar numa luta fratricida que não percebemos, que não é nossa, como recorrentemente aconteceu e acontece, numa apropriação de valores e de identidades onde se é instrumentalizado.
De forma simples, sem teologia, com Santo António se percebe que a alegria mais efémera da vida vale mais que qualquer morte, sempre definitiva, mesmo que supostamente gloriosa.
Para saber mais:
“António, um laboratório de identidade”
“Em tempos de martírios, urge revisitar os «Mártires de Marrocos»”
Coordenador da Área de Ciência das Religiões da Universidade Lusófona e Director do Instituto Al-Muhaidib de Estudos Islâmicos