Thomas Morus (ou Thomas More) Thomas Morus (ou Thomas More)DR

A “odisseia” da Utopia, ou a imagem do mundo que merecemos

Quando há mais de 2700 anos se compilava e redigia a Odisseia, talvez essa passagem a escrito já fosse imagem do fascínio que viria a marcar indelevelmente este clássico: a viagem que ficaria lavrada na nossa língua através do nome da personagem principal – a odisseia, a viagem de Ulisses, Odisseu, seria não apenas a sua viagem, mas ficaria para sempre como a imagem da Viagem, talhando a palavra “odisseia” ainda hoje usada em qualquer contexto em que a viagem seja “homérica”.

E esta imagem de viagem cristalizada no nome de quem a fez, e que nos serve de matriz, mais não é que caminho, sofrimento, mas também sonho e desejo de chegar a um final tantas vezes imaginado e querido, mas outras tantas quase abandonado por ser impossível. Isso é uma odisseia, e isso é ao mesmo tempo o desejo utópico de seguir, de prosseguir mesmo quando se sabe nunca chegar.

Muito mais perto de nós, há cerca de 500 anos, Rafael Hitlodeu, um português, era a personagem que Thomas Morus usava para reintroduzir na Europa a ideia de Platão de uma ilha idílica, em tudo avançada e justa, o não-lugar, à letra, o não-topos, o lugar imaginário onde se colocava o sonho e a busca, o desejo e a vontade inventiva.

Com muitos autores que poderíamos citar, a Europa sempre foi isso, utópica e, literalmente, desencaminhadora – de Homero e de Platão a Morus e, depois, a todo o Iluminismo, cientismo e mesmo o positivismo e o marxismo, com tantos excessos ideológicos que desvirtuaram a ideia de Utopia. Mas o essencial sempre lá esteve: o desejo de busca e de superação.

Contudo, hoje, depois do esquizofrénico século XX, encetamos uma deriva de busca de identidade, de regresso aos nacionalismos, cimentada numa ideia de decadência, de esvaziamento de sentido do projecto europeu. De facto, hoje, até por via da crise económica, cada vez mais vemos movimentos enaltecedores do conservadorismo que, em qualquer novidade, vêem o erro, o saco de todos os males, como se o que querem conservar, hoje, fosse mais antigo que um ontem não muito distante, também ele resultado de mudança e de movimento.

Cioran, tal como Fukuyama, têm neste assunto palavras importantes que devemos reter. Teremos esgotado a nossa capacidade de pensar o impensável? Perdemos, enquanto cultura, a dimensão do utópico?

Obviamente, e basta olhar para a Atlântida de Platão ou para a ilha de Utopia de Morus, esse sonho de sistema, de forma de vida, está sempre fora. Reside sempre em algum lugar que se deve atingir ou imitar, uma ilha de S. Brandão que se confunde com a dimensão de tempo, um espaço e um lugar fora da nossa temporalidade, quase escatológico. A utopia não se materializa; alcançando-a, deixa de ser utopia e passa a ser realidade material, não mais sonho que comanda o desejo.

Mas hoje, o que se torna desafiante, é ficar. Em vez de, simplesmente, ver no outro a solução não tocada pelos nossos males, interessa agora retomar a nossa própria herança de Liberdade e recheá-la de valores universalistas, vindos de todas as culturas. Retorno muitas vezes à frase de Damião de Góis: no tempo da Utopia de Morus, quando ele colocava na boca de um navegador português as boas novas de uma terra totalmente utópica, a cidade de Lisboa era “de muitas e desvairadas gentes”, pululando e fervilhando de “outros” que seriam um constante confronto do olhar, um desafio que não consguimos integrar nem dar resposta.

Infelizmente, até o próprio Góis seria acusado pelos poderes normativadores do pensamento e da consciência. O cristianismo católico de Quinhentos seguiria vias de exclusividade e de violência que nos deixam ainda hoje um ressentimento histórico muito profundo. No auge de uma sociedade diversa, a Inquisição começaria um longo e sangrento processo de monotilização da nossa sociedade, do qual ainda somos herdeiros. E somos herdeiros, não apenas no afastamento que criámos a essa religião, que matou e perseguiu em nome de Deus, mas também nas formas como nos tornámos incapazes de procurar a Utopia dentro de nós.

A principal marca de afastamento da Europa do Cristianismo está nessa aparente incapacidade que temos de nos recriar com a nossa própria matéria. Brincando com Shakespeare, a matéria dos sonhos tem de ser parte de nós mesmos, não o que nos está exterior. O Cristianismo sempre foi uma Utopia, um modelo, um desejo a atingir. Um projecto seminal, como afirma Tolentino Mendonça (Expresso (Única), 27.06.2009), que nasce de um quase nada e se transforma numa civilização prenhe de valores como os Direitos do Homem.

E, contudo, após esta longa história de Utopias às quais tudo devemos, especialmente ao próprio Cristianismo, tão pouco reencontrado, hoje, na nossa cultura, temos quem nos diga: «Deixem a utopia»!

Não venho defender religião alguma. Venho apenas defender o MEU património mental, enquanto cidadão europeu e enquanto alguém que nasceu numa cultura profundamente marcada, entre outras tradições, pelo Cristianismo: a Utopia é a nossa distintiva marca, não o nosso pecado.

É difícil imaginar maior acabrunhamento intelectual que recusar-se a Utopia a uma sociedade.

Obviamente, isto é imagem de nós mesmos. Não é exterior. Não é imposto.

Somos nós quem abre e fecha Portas.

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Coordenador da Área de Ciência das religões da Un. Lusófona