Religião na Cidade
Fraternidade: para um regresso ao fundamental
Aprendemos a voar como pássaros e a nadar como peixes,
mas não aprendemos a conviver como irmãos
Martin Luther King
Apesar da muita bibliografia sobre o tema, pouco sabemos sobre as primeiras “fraternidades” organizadas que terão nascido um pouco por todo o Mediterrâneo oriental por volta dos séculos VII / VI a.C., senão antes, dando resposta a uma tomada de consciência da individualidade e dos seus direitos, ao mesmo tempo que se desenvolvia um mundo centrado em grandes cidades com imensas populações desenraizadas e reduzidas a uma pobreza extrema.
A grande revolução social e religiosa desses primeiros séculos da Idade do Ferro teve diversas implicações surpreendentes de que ainda hoje somos herdeiros:
– Divulga-se a escrita alfabética, passando a ser usada por um largo grupo de indivíduos, quer comerciantes, quer religiosos, permitindo o registo eficaz e rápido de trocas e de rituais;
– Nasce a moeda que passa rapidamente a dominar as trocas comerciais, levando ao desenvolvimento do crédito, tendo como primeira grande crise a redução de muita população à escravatura nos séculos VI / V, quer nos territórios gregos, quer itálicos, ou mesmo sírios, sem contar com a tremenda concentração latifundiária por impossibilidade de pagamento de dívidas;
– Nasce e consolida-se a ideia de cidadão, ente político ligado a uma cidade e a uma estrutura administrativa que o defende e na qual ele participa, tendo deveres e direitos, perdendo a iniciativa da justiça, da vingança, em detrimento dos tribunais comunitários.
Neste quadro, com uma liberdade de circulação nunca antes vivida, com uma economia centrada no lucro, com relações com as cidades-estado que procuram dominar parte da vida social do indivíduo, tem ainda mais destaque o nascimento das chamadas Religiões de Mistérios, os primeiros grupos religiosos que vão difundir um novo ideal, o de, tal como na ideia de cidadania, todos os crentes serem iguais perante uma divindade criadora, portanto «Irmãos», fraternos.
É a este universo mental que o Cristianismo, tal como o Islão, vai buscar a designação de Irmão, a natureza que une todos os crentes no facto de serem “filhos” de uma mesma Criação e Criador. Será também a este universo mental que muito mais tarde a maçonaria moderna do século XVIII vai buscar material identitário para reformular a mesma ideia de Fraternidade, elevando-a a uma recriação do suposto ideário da democracia ateniense na ideologia da Revolução Francesa: Liberdade, Igualdade, Fraternidade.
Contudo, se em alguns universos contemporâneos iniciáticos ainda se usa a terminologia Irmão ou Frater, alguns monoteísmos reduziram o uso da expressão ao simplesmente ritual, esvaziando a prática social de quase toda a dimensão de Fraternidade. “Oremos Irmãos” diz-se no ritual católico sem que isso tenha qualquer expressão social para a maioria dos crentes que estão em assembleia. Mostrando que já nada se entende da essencialidade da ideia de Fraternidade na nossa civilização, procuram-se formas legais que obriguem quem pertence a uma Fraternidade a dizê-lo publicamente, negando o que de fundamental essa pertença tem: o íntimo de um indivíduo afirmado na construção de laços familiares não consanguíneos.
Hoje, num quadro em que tantos pensadores falam num primado do individualismo, parece cada vez mais claro que é necessário retomar as dinâmicas que nos levam a anular os isolamentos e a erosão dos laços sociais que, em ambiente de crise, se afirmam através da sua fragilidade e desumanização das relações. Seja num campo religioso ou num outro de natureza espiritual, hoje parece unânime que urge recuperar e dar força às instituições de criação de laços, de fortalecimento das “vizinhanças”, de estabelecimento de garantias de respeito e de procura de dignidade – no limite do ridículo a que o neoliberalismo nos levou, os seguros de saúde e os planos poupança reforma dão estabilidade financeira, mas não anulam a solidão nem dão sentido à existência.
Lançada na Revolução Francesa, estabelecida na Declaração Universal dos Direitos do Homem (resolução 217 A (III) da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 10 de Dezembro de 1948), a Fraternidade tem sido a dimensão preterida na gestão dessa herança iluminista. Apesar de suportada legalmente em muitos aspectos constitucionais, tais como o direito à habitação, a Fraternidade não deixou de ser um horizonte burocrático reduzido a práticas assistencialistas postas no terreno em momentos de crise quando a dignidade já desceu a níveis quantas vezes sub-humanos – a Fraternidade implica exactamente a manutenção da dignidade, não apenas as capacidades de sobrevivência.
Mas temos hoje pedras angulares a serem colocadas nos alicerces da nossa consciência. E é exactamente por este sentido que temos de avaliar e dar lugar a alguns eventos que brilhantemente têm dado luz aos tempos pouco fraternais que vivemos.
Há pouco tempo, nos primeiros dias de Abril, Diogo Freitas do Amaral fez uma reflexão em torno da possibilidade de uma Fraternidade Universal. Será possível uma fraternidade que plasme no universo dos laços a globalização que já se verifica noutros campos, seja ela no universo das instituições ou da informalidade? E como definir essa ligação entre elementos de uma mesma espécie mas de religiões, culturas e nações diferentes?
Entre outros, Luc Ferry já trabalhara esta ideia, aliás nada recente, de uma Espiritualidade Laica, não negando a existência de um sentido espiritual religioso mas, sim, dando destaque aos laços de uma de Fraternidade fora do religioso, acima dele porque da espécie, de um horizonte de interpretação pós-moderno de uma Filosofia Natural.
Se em Fafe, com a iniciativa «Terra Justa» - onde decorreu a dita intervenção de Freitas do Amaral – tivemos o enaltecer da ideia de Justiça, o elo que deveria gerir e gerar humanidade, em Miranda do Corvo, Jaime Ramos, na Fundação ADFP, vai lançando paulatinamente um largo projecto que se enraíza numa visão ecológica do Homem colocando-o no centro de uma cosmologia que, em primeiro lugar, nos mostra a Natureza com um Parque Ecológico, desenvolvendo num segundo momento e espaço contíguo a criação de cultura, o Espaço da Mente, um Ecomuseu, exactamente as formas de dominar o mundo e a natureza criando instrumentos e instrumentação –a relação com o ecossistema, natural e cultural através da criação.
Mas, hoje, a relação do Homem com o seu próprio ecossistema já não se vê apenas no quadro do domínio cultural e tecnológico. Por fim, num terceiro momento, Jaime Ramos oferece-nos, ainda em projecto, um espaço de Templo Ecuménico que se centra no trivium da Liberdade, Igualdade, Fraternidade. Um templo sem um Deus, mas centrado na possibilidade de acolhimento de todas as noções de divino. Um espaço simbolicamente unificador, centrado no enaltecimento das capacidades espirituais do Homem, capacidades que nos levaram a criar e a estabelecer as mais nobres ideias de relação entre indivíduos e comunidades.
Não será a Fraternidade, exactamente no sentido que Jaime Ramos tece no seu vasto projecto, algo de imanente ao Homem enquanto espécie? É verdade que somos capazes das maiores mortandades e dos genocídios mais indizíveis e eficazes. Contudo, somos também capazes dos gestos mais fraternais como quando, por exemplo, somos como que compelidos ao auxílio num desastre, numa catástrofe. Nesses momentos, parece que algo une a espécie no sentido da salvação do igual, do “irmão”.
Cultural, logo, adquirido e desenvolvido, ou imanente, natural, a ideia de Fraternidade parece ressurgir num tempo e num quadro onde ela francamente nos faz falta. Apenas ela, levada ao limite de toda a Natureza e já não apenas cingindo-se à espécie, nos poderá abrir portas para uma relação efectivamente fraternal com a natureza e já não mais de domínio. Numa ecologia do humano, centrada no que lhe é exterior mas também nos seus próprios equilíbrios, apenas a noção de Fraternidade se torna operativa para a assumpção de uma Igualdade sólida.
É neste sentido que também nas últimas semanas foi lançado o Acto Declarativo da Humana Fraternitas, um projecto associativo em nascimento que nesse seu texto fundante nos remete para um dado fundamental já inscrito na Declaração Universal dos Direitos do Homem: “todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade”. Ora, é perante a inoperatividade desta declaração com que todos inequivocamente concordamos, que importa agir. A Humana Fraternitas será um espaço de acolhimento para todos os que se revejam nesta necessidade de colocar a Fraternidade nas nossas agendas mentais e políticas.
Paulo Mendes Pinto, director da área de Ciência das Religiões da Universidade Lusófona