Religião na Cidade
O coelho papal
Omnipresente na paisagem campesina do Sul da Europa, o coelho nunca centrou em si grande significado simbólico. Longe das capacidades das aves de rapina, muito mais longe da grandiosidade dos mamíferos de grande porte, este pequeno animal deve ter sido uma companhia comum às comunidades pré-históricas que viram nele um alimento fácil, quase sempre à mão, apesar de não ser um investimento que desse para grandes refeições ou para acumular proteínas para épocas menos propícias.
Contudo, o facto de não ter servido como imagem para nenhuma grande religião não implica que o coelho tenha passado invisível aos olhos dos nossos antepassados. Antes pelo contrário. Aqui em Portugal, por exemplo, encontram-se várias figurinhas pré-históricas, do Neolítico e do Calcolítico, com este simpático roedor.
É complicado saber hoje, vários milhares de anos passados, o que queria um humano como nós significar com um minúsculo láparo em osso. À boleia da revista norte-americana que transformou este pequeno mamífero em símbolo sexual, seguimos a leitura e achamos que deve vir de longe o uso deste pequeno serzito como imagem propiciadora da cópula e da reprodução, ou não fossem os coelhos famosos por isso mesmo: cópulas rápidas e eficazes, capazes de dar ao mundo cerca de uma dezena de novos coelhitos de forma regular.
A imagem está tão bem cimentada que o “jovem” Papa Francisco, com um papado já marcante mas ainda em fase de instalação de estilo, não se inibiu em usar a imagem deste ser, agora tão comum como animal de estimação, para criticar os casais católicos que afirmam a sua religiosidade através de uma prole de filhos que resulta do pleno respeito à ordem eclesiástica de nada fazer contra a natureza e, assim, se acasalam, fazem-no sem recurso a qualquer técnica que impossibilite a fecundação, dando filhos ao mundo ao ritmo certinho de uma das ovulações imediatamente seguintes ao último parto.
Tudo se passou no regresso da viagem às Filipinas, nas já célebres entrevistas no avião, lugar onde os Papas brindam os jornalistas com momentos de alguma informalidade. Nesse país asiático com uma imensa comunidade católica, são milhares as crianças abandonadas por os pais não terem como as sustentar. Questionado sobre essa realidade, o Papa terá lembrado uma situação que nessa visita o tinha marcado.
Terá dito o Papa Francisco, com muito do Pe. Bergoglio que percorria regularmente as zonas degradas de Buenos Aires: “A abertura à vida é uma condição do sacramento do matrimónio, mas isso não significa que os católicos devam fazer crianças em série. Falei com uma mulher, grávida do seu oitavo filho depois de sete cesarianas, e disse-lhe: ‘Você quer deixar órfãs sete crianças’”. A mulher, piedosa, terá afirmado a sua confiança em Deus. Contudo, o Sumo Pontífice, num sentido de muita responsabilização do humano, ter-lhe-à dito “"Deus deu-te os meios para seres responsável". Alguns crêem, perdoem-me a expressão, que para serem bons católicos devem ser como coelhos”.
Sim, tornou-se uma das imagens de marca das famílias católicas praticantes o não usar formas de contracepção e, assim, procriar muito mais que os restantes casais. Seria tentadora, como no caso da leitura que se faz dos coelhitos em osso que surgem nos povoados pré-históricos, pensar que estes casais, que copulam como coelhos, o fazem porque são senhores de uma sexualidade saudável.
Contudo, o mais irónico ou mesmo dramático, desta comparação papal é exactamente o facto de se saber que a sexualidade tradicionalmente afirmada pelo catolicismo é tudo menos um rio cheio de saúde. Nela corre o estigma lançado há muito pela ideia de pecado original onde tudo o que é prática sexual é mal vista e, sim, afirmado como apenas existir para a função reprodutora. Só muito recentemente surgiram os primeiros textos pontifícios a dizer que o prazer sexual é natural.
A grande questão que se coloca é mesmo na essência de uma pastoral que ainda usa recorrentemente a imagética do sexo como perdição e pecado. Estará o Papa apenas a fazer uma crítica social ao facto de nas Filipinas, assim como noutras regiões do globo, se lançarem para a rua muitas crianças que nasceram no seio de famílias que as não podem sustentar, ou, mais profundo, estará o Papa, qual coelho tirado da cartola, a dar uma primeira lição em torno da ideia de pecado e do estigma que a sexualidade tem na cultura católica, dando início a uma imensa revolução?
Só tempo nos responderá.
Paulo Mendes Pinto, director da área de Ciência das Religiões da Universidade Lusófona