Religião na Cidade
«Terra Justa», uma ecologia do humano na busca de causas
Hoje, poucas coisas são tão portadoras de ideia de ilusão como a Internet. Todos podemos criar um blogue ou um ter um perfil no Facebook. Quase se generalizaram os pontos gratuitos de acesso à Internet. Qualquer maquineta a que continuamos estranhamente a chamar telemóvel tem as ferramentas para nos colocar ininterruptamente ligados à rede.
Contudo, esta generosidade dos tempos não correspondeu, de facto, a um reforço de laços. Temos “amigos” que nunca vimos, com os quais partilhamos murais (ou morais?), mas a solidão está instalada de uma forma preocupante, como se a sociedade tivesse esquecido a dimensão antiga do “vizinho”, todo um universo onde ao indivíduo correspondia uma teia de relações que implicavam um lugar num conjunto, um sentido e uma responsabilidade do e para com o colectivo.
Embevecidos e extasiados numa cultura onde a informação circula à distância de um clique, dando-nos essa ilusão de tudo poder saber, não reparamos que apenas usamos essas tecnologias para mais um “like” numa figura pública que só o é por isso mesmo, pelo frenesim dos “likes” conseguidos, ou nos muitos Cristianos Ronaldos que em democracia foram usados pelo imaginário colectivo para manter a alienação tão bem conseguida no regime autoritário onde o futebol fazia parte da célebre lista do “3 Fs”: Fátima, Futebol e Fado – consagrados já em época recente com a panteonização do fado e do futebol através dos seus dois principais símbolos, ao passo que os Pastorinhos de Fátima seguiram o cursus honorum equivalente no contexto do reconhecimento católico.
E onde ficam as comunidades, as de proximidade, que valorizam e dão significado à pessoa humana? Mais, onde ficaram os espaços de encontro e de debate em torno de valores e de causas? Mais uma vez, a ilusão do virtual cria-nos a possibilidade de assinar manifestos, de por a circular abaixo-assinados, de afirmar que participamos em eventos e… quais senhoras tão criticadas de outros tempos que limpavam a consciência com os “seus pobrezinhos” a quem tratavam com muita caridadezinha após uns beneficentes jogos de canasta, também nós julgamos ter feito a nossa parte e ter dado o nosso contributo para um mundo mais interventivo, mais crítico, fazendo mais um “like” numa suposta causa, mas sem nunca ter tirado os olhos de um ecrã ou saído do sofá.
Os espaços e os momentos mobilizadores em torno de valores e do que definimos civilizacionalmente como as grandes causas têm, de facto, sido remetidos para um campo de intensões onde o lixo internético nos mostra milhares e milhares de websites e de perfis, mas quase todos eles completamente desprovidos de nexo, sem consequências que mostrem que a algo de positivo correspondem, além do afagar de muitos egos que nessa busca de “likes” encontra o alimento para se multiplicar.
Ora, nestes dias, em Fafe, pela mão do município, algo aconteceu que veio contrariar tudo o que eu antes escrevi. Numa iniciativa única, a autarquia de Fafe conseguiu levar a cabo um excepcional evento que mobilizou pessoas em torno de Causas e de Valores, com pensadores, ONGs, muita reflexão e debate, com homenagens e, acima de tudo, com interpelações.
O programa foi rico e mereceria descrição e valorização de cada uma das partes. Mas o essencial a que me referirei é a ideia procurada e, convenhamos, conseguida: no título «Terra Justa», mais que reencontrar uma lenda local que marca uma identidade, foi perseguida a ideia de Justiça, de Bem, de procura dessa proximidade que valoriza o que, filosófica e civicamente prezamos como parte essencial da nossa identidade colectiva e política.
E isso ganha corpo na vida da polis, na coisa pública. À crítica tão transversal e, convenhamos, fácil, de dizer que vivemos numa “era do vazio”, tem de corresponder a criação de espaços e de momentos como este que ocupem esse constatado nada. Não basta fazer o diagnóstico já velho de tanto repetido, mas continuar a apenas ouvir os comentadores desportivos. É necessário agir e criar momentos em que o cidadão se veja convidado a debater, a ouvir, a participar e a intervir. Por estes dias, em Fafe, agiu-se dessa forma.
O campo da Justiça, tão forte na designação «Terra Justa», é o elo essencial numa sociedade que se queira de Direito, justa e equitativa, democrática e participada. Mas nessa ideia de Justiça, tão apelativa em tempos onde ela parece ser constantemente agrilhoada, podemos ver mais, muito mais. O essencial encontra-se exactamente no sentido ético, profundo, que já no Egipto Antigo se encontrava e que transportámos para nós através dos Dez Mandamentos. São os valores essenciais que na longa caminhada de cultura se sistematizaram na Carta dos Direitos do Homem quando as tradições religiosas abraâmicas se cruzaram com o Iluminismo e com o Racionalismo.
E no horizonte da Religião, a noção de Justiça ganha foros de entidade tão grande quanto na vida cívica. De Salomão ao já referido Egipto, onde fomos buscar a iconografia da balança ainda hoje usada, terminando no ideário medieval onde os monarcas eram os distribuidores da justiça, todo o nosso imaginário se encontra trespassado por um sentido de Justiça que não é apenas o acto de a gerir caso a caso, mas é a sua própria natureza que, sem dúvida, ao longo dos séculos tem sido caracterizada como sacra.
E a Justiça surge como sacra porque, como vemos bem nos escritos sobre Salomão, ela é a praxis que advém de a Criação continuar operativa. A não-justiça surge, quer no antigo Israel de Salomão, quer no Egipto faraónico, como retrocesso, como regresso ao Caos. A Justiça, por contrário, é a Ordem, é a imagem de que a Criação corre e continua na sua própria natureza.
«Terra Justa» é, inevitavelmente, uma Terra que respeita o legado, uma ecologia plenamente integradora do Homem em todas as suas dimensões – que valoriza o que se recebe e o transmite para o futuro. Cívica ou religiosamente, «Terra Justa» significa uma postura de respeito para com o que existe, o que tem, no fundo, uma inevitável natureza fraterna em nós.
Numa dimensão ecológica, a fraternidade não deixa de ser senão o acto de ver como semelhante tudo o que nos é externo, mas comum em origem. Perante uma afirmação de tão horizontal igualdade, a Fraternidade é uma afirmação de comunhão que mostra o máximo respeito pelo que cada um crê ser aquilo de onde vimos.
Não precisamos de estar de acordo em relação à origem, à Criação. Apenas precisamos de confluir num consenso: agir justamente nesta Terra em que existimos. Torná-la justa, respeitando-a, respeitando-nos. E é neste quadro que o diálogo ganha um denominador comum: o respeito.
Director da área de Ciência das Religiões na Universidade Lusófona