Na ponta da língua
Como não fazer uma caldeirada e como fazer uma caldeirada que seja boa
A caldeirada deve ser o prato favorito dos portugueses que os portugueses menos têm a felicidade de comer. Em Lisboa, então, é dificílimo.
Há muitas razões para isso. A caldeirada só é boa acabada de fazer e leva pelo menos 40 minutos. Conheço grandes cozinheiras de caldeiradas que se recusam a começar uma só por telefonema. As pessoas depois atrasam-se e a caldeirada é que sofre.
Sempre que consegui convencer um cozinheiro (os homens são mais corruptíveis) a fazer uma caldeirada antes de eu chegar aconteceu uma de duas coisas: ou começa muito mais cedo, aproveitando o erro da encomenda, ou começa na hora combinada e há pessoas que chegam tarde, estragando a caldeirada.
Quem diga que a caldeirada se pode manter quente (ou, igualmente mau, que se pode aquecer) não está a mentir. Claro que se pode. Mas a caldeirada é que sofre: fica uma merda, comparada com o sabor e o cheiro delicado de uma acabadinha de fazer.
Outro erro da caldeirada é julgar que tem de ter certos peixes, conforme as receitas. A caldeirada começou por ser uma solução dos pescadores para aquele peixe pequeno, feio ou pouco apreciado que não conseguiam vender. Uma caldeirada aproveita o peixe que há: só importa que seja fresquíssimo.
Uma grande cozinheira mostrou-me que se faz uma bela caldeirada só com um peixe (raia). Ou com dois peixes (raia e tamboril). É verdade. Se o molho de cozedura (cebolas e tomates) estiver bem feito, a caldeirada é um guisado de batatas que é bom só por si, ao qual se acrescentam umas postas de peixe que se cozem levemente.
Para saber quais os peixes que devem entrar numa caldeirada basta ir à peixaria: são os peixes que estiverem mais frescos e ao preço que se quer gastar. Pode-se fazer caldeirada de carapaus, fica óptima. Não há nenhum peixe, molusco ou crustáceo que fique mal.
Aquilo que é proibido numa caldeirada é peixe que não esteja fresquíssimo. A caldeirada, tal como a fritura, longe de disfarçar o sabor a “pixungue” do peixe envelhecido, multiplica-o. A única coisa que disfarça é o picante forte, pelo que só se deve comer caldeirada picante quando se conhece bem quem a faz.
Desde que li a Cozinha Tradicional Portuguesa experimentei quase todas as receitas de caldeirada recolhidas e trabalhadas por Maria de Lourdes Modesto. São todas muito boas. A variedade é deslumbrante. Se o peixe for fresco é impossível que uma caldeirada acabada de fazer não fique deliciosa. É um milagre. Se põe ou não alho, louro, pimentos ou batata-doce, fica sempre bem.
A caldeirada pode fazer-se toda de uma só vez mas fica melhor quando é feita por fases. A ideia é fazer primeiro uma caldeirada de batatas.
Tapa-se o fundo do tacho com bom azeite. Cortam-se cebolas lá para dentro: mais do que pensa. Deixam-se cozer até ficar transparentes e largar água, devagarinho, sem pressas. Quando estiverem prontas pode-se deitar um dente de alho — ou não. E uma folha de louro — ou não. Vale a pena fazer uma caldeirada nua (só com tomate e cebola) para perceber o que se perde e o que se ganha. Tem também a vantagem de dar menos trabalho e de mostrar mais o sabor do peixe.
Se quiser pôr pimento, é agora. As caldeiradas ficam bem com e sem pimento. Não precisam do pimento. Deitam-se depois tomates maduros, cortados conforme se gosta. Dá-se tempo aos tomates. Têm de perder a acidez, para não encruar as batatas. Quando já estiverem rebentados, é altura de juntar as batatas, incluindo batata-doce, que fica muito bem. Agora deixam-se cozer lentamente, até ficarem quase prontas.
Só nesta altura é que se juntam as postas de peixe, por ordem de cozedura. O peixe coze-se depressa e é por isso que tem de cozer devagar, para apanhar um bocadinho do sabor da caldeirada. Mal esteja cozido, é altura de servi-la. Agora só é preciso paciência e cuidado para não queimar a boca. Boas caldeiradas!