Vida em grande estilo
Os meus oito mandamentos para os empregados de pastelaria
Em vez de fazer resoluções de ano novo para mim, decidi fazer para os empregados de pastelaria, sob a forma de mandamentos. Ei-los:
– Não porás manteiga na sandes mista
Eu sou solidário com a utilização da manteiga, porque também sou um adepto da mesma. Mas se calhar não é preciso besuntar tudo com manteiga. Há que traçar o limite algures. A febre da manteiga é tal que já houve sítios onde tive de dizer: “Queria uma salada de frutas sem manteiga, se faz favor.” Aposto que em todas as pastelarias existe uma pessoa só para barrar manteiga.
– Não me ferverás o galão ao ponto de não conseguir tocar no copo
Para mim pedir um galão não é uma busca de aventura; não é um teste de resistência ao calor. Quando entro na pastelaria não estou à espera de perder falanges ou ficar sem metade do lábio, como quem escala o Evereste. Dá vontade de dizer ao empregado: “Olhe, faça-me o seguinte, este fica já reservado para amanhã; fica a arrefecer. E agora faça-me outro que seja compatível com seres humanos.”
A grande paixão platónica da minha vida foi um galão. Recordo-me como se fosse hoje: Eu fervia de desejo pelo galão, ele simplesmente fervia, mas não nos podíamos tocar. Foi doloroso. Nunca mais soube nada dele. Despedimo-nos sem qualquer contacto.
– Quando pedir uma pastilha Gorila ou umas Pintarolas não me obrigarás a repeti-lo em voz alta
Sou um indivíduo trintão, já com sinais de clara decadência, e ter de repetir em voz alta que quero uma pastilha Gorila provoca-me constrangimento. Se me obrigarem a isso acabo por pedir umas Trident, que têm um ar mais adulto, e lá se vai todo o sonho infantil que alimentei até chegar ao balcão.
– Nunca farás sandes de fiambre com fatias de dois metros de espessura, que mais parece que estou a comer naco de porco no pão. Até pode ser fiambre da perna extra, que a finesse fica toda diluída na espessura.
A propósito de “perna extra”, gosto da forma como continuam a utilizar este adjectivo no fiambre, fomentando todo um imaginário de porcos com cinco pernas. Era interessante que existissem mesmo porcos mutantes em abundância. O que significava que ser suinicultor era como jogar na raspadinha, com um pouco de sorte, saía um porco premiado: “Olha, este aqui também tem uma perna extra!” “Que sorte! Já vais ter fiambre de qualidade!”
– Não me cortarás o bolo ou a sandes ao meio sem eu pedir
Detesto que me façam isso. Especialmente se for para comer pelo caminho. Às vezes gostava de ter um braço extra, nem que fosse de porco, para poder segurar na bebida e em duas metades de pão ao mesmo tempo, mas não fui bafejado com essa sorte. E se me fartasse do braço podia sempre dá-lo a alguém, a um maneta, por exemplo: “Toma lá um braço. Sei que precisas.” “Não, deixa estar.” “A sério, fica com ele! É de porco, mas é de boa vontade!”
– Não matarás
É sempre bom incluir este. Nunca se sabe a reacção se pagarmos o café com 20 euros.
– Não me darás um galão normal quando pedir um galão claro
Quando eu peço um galão claro, por mais mariquinhas que seja, é um galão claro, não é um galão de plena pujança. Aliás, um galão claro já é um abuso. Já sou eu a facilitar. Porque a cafeína provoca reacções de tal forma instantâneas em mim, que o mais correcto seria pedir um galão com três gotas de café medidas com uma pipeta.
– Não porás o troco no balcão se eu estender a mão para o receber
É a mesma coisa que um padre ver a mão do crente estendida e decidir enfiar-lhe a hóstia na boca sem dizer água vai. “Ah queres na mão? Então toma lá os sacramentos na boca!”
É incrível, mas esta coisa de começar as frases por “Não” ou “Nunca” e usar os verbos no futuro do indicativo dá mesmo solenidade às frases. Deve ser por soar tão estranho. Se calhar é esse o truque. Acho que vou passar a falar assim com os meus filhos: “Não cobiçarás o Gormiti do próximo! Nem me deitarás o telemóvel na sanita, rai's parta! Ouviste? Senão irás já para a caminha!”
Gonçalo Puga, 36 anos, tradutor.