Bruno Simões Castanheira

A incúria, a cegueira e a estupidez que nos levam a virar as costas à bonança das amendoeiras do Algarve

Todo o turismo algarvio começou com a história das amendoeiras em flor — e assim deveria continuar, se não fosse a brutalidade do cálculo contabilístico. Mas este ano, relatou-nos a nossa querida amiga, "as amendoeiras do Algarve, que já foram cartaz e ícone do Algarve, estão agora todas abandonadas". "Não há quem as trate. Quem lhes apanhe o fruto. 'Não rende...' é o argumento que dão. E assim tudo se resume ao valor comercial. O maior drama do Algarve (pondo de parte as urbanizações do litoral) é o futuro das amendoeiras. O futuro desta identidade paisagística e também da doçaria. As amêndoas da Califórnia não são a mesma coisa para doces e sofro por ver estas árvores suplicantes sem ninguém que as acuda,que alerte para isto".
 
Os outros países, menos ricos no que têm, defendem o que têm. Nós, quanto mais temos, mais desprezamos. A amêndoa do Algarve é um valor patrimonial português. Deveria ser promovida e vendida de maneira a que "rendesse" tratar das amendoeiras e apanhar-lhe as doces amêndoas.
 
Portugal é, para todos os efeitos, auto-suficiente em alimentos. Quase tudo o que importa poderia produzir-se cá.
 
Façamos um exercício mental. Imagine-se que, de um dia para o outro, se acabavam as importações e exportações.
 
Haveria países europeus (os do Norte) que sofreriam um violento estreitamento da oferta alimentar. Mas vejamos o caso de Portugal. Todo o trigo que importamos poderia ser produzido cá. O Ribatejo e o Alentejo poderiam tornar-se nos celeiros da nação da famosa cantiga.
 
Não nos falta rigorosamente nada. Importamos muito peixe e muita fruta mas temos peixe e fruta suficientes para que não nos falte. Não são apenas as amendoeiras que foram abandonadas. São pomares inteiros que se deixam apodrecer e morrer.
 
A solução é contra-intuitiva. O preço das frutas e dos alimentos portugueses, quando são cuidadosamente produzidos, seguindo os métodos tradicionais, tem de ser mais elevado do que as frutas agro-industriais que vêm em grandes quantidades sabe-se lá de onde.
 
Ao fim de cinco ou seis anos de cerco Portugal poderia ser completamente auto-suficiente - e sobrar. Há uns tempos li um folheto apaixonante sobre a alcaparra, editada nos anos 40, em que se explicava a facilidade com que se pode produzi-la. Que razão há para gastar dinheiro a importá-la de Marrocos e da Sicília, perguntava o autor.
 
Passados 70 anos continua a não haver alcaparras portuguesas. E quem diz alcaparras diz todas as variedades de plantas mediterrânicas que importamos só porque ninguém se lembrou de produzi-las cá.
 
Temos dois exemplos a seguir: o dos vinhos e o dos azeites portugueses. Em menos de trinta anos, graças a esforços heróicos, têm melhorado não só a qualidade como a estima em que são tidos.
 
Espreite-se na net a forma agressiva como é promovida a amêndoa da Califórnia. Ao mesmo tempo, veja-se o prestígio que tem a amêndoa espanhola Marcona. Custa três vezes mais do que a californiana porque tem uma identidade própria e um sabor único. É fácil encontrá-la, assada e salgada, no mercado português - até embalada por empresas norte-americanas.
 
O que não encontrará são  amêndoas do Algarve assadas e salgadas (quem se lembra delas sabe como são espectaculares). Nem tão-pouco poderá comprá-las cruas, para descascá-las e assá-las.
 
A Amêndoa Douro, felizmente, tem DOP e está bem definida no site dos Produtos Tradicionais de Qualidade. Falta fazer o mesmo para as amêndoas de Trás-os-Montes e, sobretudo, para as do Algarve, de onde todas elas nasceram.
 
Ainda vamos a tempo. Mas, a certa altura, habituamo-nos às amêndoas da Califórnia e lá se vão milénios de gostos e de tradições...