Peso e Medida
A sustentável corrida do ser
Descanse o leitor. Esta não é (mais) uma crónica sobre gestão do tempo.
Descanse o leitor. Esta não é (mais) uma crónica sobre gestão do tempo. Ou sobre o facto de cada vez mais pessoas descreverem a sua vida como estando “sempre a correr”, ou a fazer “maratonas” na jornada de trabalho para responderem às exigências. Esta é uma crónica literalmente sobre o “correr” como expressão física e sobre os motivos desse comportamento.
De facto, contrariando chuva, frio, horários apertados e compromissos familiares, milhares de pessoas lançam-se na corrida recreativa. Correr é desafiante, por vezes doloroso e, a partir de um determinado nível, envolve uma preparação metódica e dispendiosa (temporal e economicamente). Porém, o número de pessoas que escolhe esta actividade não tem parado de crescer. De forma mais ou menos aventureira, organizada ou sistemática, milhões de pessoas correm, diariamente, por todo o mundo. Multiplicam-se grupos de running e lojas de especialidade, aumenta a taxa de participação em provas abertas e, ao mesmo tempo, assiste-se também a um surgimento de várias especialidades da corrida (trail, urban, praia, etc.). Simultaneamente, aumentam também as interrogações acerca deste fenómeno de superaderência... O que leva as pessoas a correr? O que procuram e o que obtêm?
A associação entre a prática de corrida e a saúde, frequentemente veiculada por organismos da tutela e órgãos de comunicação, leva certamente alguns praticantes à estrada. Mas coexiste nos corredores uma série de outros motivos, alvo de um estudo inconsistente ao longo das ultimas décadas que pode ter por base a complexidade da motivação para a corrida. Há quem lhe chame uma verdadeira “salada motivacional”, de tal forma vários tipos de motivos podem estar presentes simultaneamente..
Simplificando um pouco, podemos dividir as motivações em dois grupos. Por um lado, factores relacionados com o processo durante a corrida, como o desafio de um treino intenso, a sensação de superação, a interacção social com os parceiros de corrida, ou o prazer do contacto com a natureza. Como alguns gostam de lembrar, “não corro para ter mais anos de vida, mas para ter mais vida nos meus anos”. Contudo, também questões relacionadas com o produto que resulta da corrida, como a prevenção de problemas de saúde, o bem-estar físico e mental nas horas e dias após a corrida, a procura da gestão do peso, ou mesmo questões de prestígio social (p.ex., comparação dos tempos numa prova, ou o reforço de terceiros após completar uma maratona) podem também justificar o envolvimento. A predominância de um tipo de motivos sobre outros é determinada por um conjunto de factores dos quais se destacam a idade, o género e experiência do praticante.
No que diz respeito às razões mais ligadas ao processo, uma das sensações comummente associada à corrida é a de flow (fluir, em português) – um estado de consciência plena caracterizado por um envolvimento integral, prazeroso e intrinsecamente recompensador na actividade. Sensações de superação, alguma euforia, adequação entre a capacidade e a exigência (o esforço percebido é mínimo) e a perda da noção do tempo são fenómenos frequentemente descritos por corredores. O flow pode também ajudar a explicar a adesão (mesmo face a barreiras) e pode melhorar a performance e o estado de humor durante e após a corrida.
No outro extremo das razões para correr pode dar-se o exemplo da obsessão com os resultados da corrida (tempo no cronómetro, peso na balança, e mesmo a saúde) ou mesmo a adição ao exercício. Esta é caracterizada por aumentos da quantidade de exercício prejudicando outras áreas da vida e é mais frequente em desportos individuais, como a corrida ou o fitness sendo exacerbada pela competição.
Concluindo, se a sua estratégia para um estilo de vida fisicamente activo passa pela corrida, poderá considerar a hipótese de diferentes motivos poderem favorecer ou prejudicar a sustentabilidade e a gratificação deste comportamento. Com base no que a investigação tem mostrado relativamente à prática de actividade física, as sensações de competência (ex., aptidão para terminar uma determinada prova), de afiliação (ex., estar com grupo de amigos que correm), de autonomia (ex., liberdade de correr quando e como quiser) e de prazer na actividade parecem ajudar à manutenção do exercício físico o longo tempo. Contudo, no que às razões para a corrida diz respeito, bem como às suas consequências, devemos aceitar que é mais o que se supõe, do que aquilo que a ciência já demonstrou...
Se já experimentou ou corre regularmente, saberia apontar quais as razões? Talvez a dificuldade em identificar um propósito único seja um bom indicador... talvez correr esteja para além de cortar metas específicas!
Fisiologista do Exercício e Investigador da Faculdade de Motricidade Humana da Universidade de Lisboa