Rui Gaudêncio

Peso&Medida

Casas e corpos: Viver neles ou vivê-los?

A chegada das primeiras chuvas outonais marcou definitivamente o fim do período de veraneio e o voltar às rotinas quotidianas. Dizem os especialistas que o fim das férias pode ser uma altura complicada, dada a algum stress e outras perturbações do foro emocional, mais ou menos acentuadas, multiplicando-se as reportagens nos meios de comunicação social sobre como preparar este período e vivê-lo da melhor forma possível.

Esta visão, tendencialmente negativa, tem sido acompanhada por outra, de teor bastante mais positivo, que sublinha o potencial desta época como de maior investimento no espaço doméstico. Toma a entrada no Outono não como um “mal” a suportar, como que adaptando a nossa vivência a um recolhimento forçado, mas como algo que se valoriza, se procura e no qual se investe.

Neste âmbito, merece destaque uma campanha particularmente bem concebida de uma marca sueca de móveis domésticos que, sob o mote “viva mais a sua casa”, faz uso de vários conjuntos de imagens ligadas ao conforto, alegria e partilha de pessoas em espaços domésticos (na cama, no quarto, no sofá da sala, na mesa da cozinha). A mensagem central da campanha é exactamente a de que, embora não se possa controlar a dificuldade nos acontecimentos/contextos exteriores – numa alusão à crise e até às dificuldades quotidianas de gestão do tempo – é possível alterar a qualidade e vivência dos espaços interiores (neste caso, domésticos) com consequências positivas no nosso bem-estar. Ideia esta reflectida noutro dos slogans muito repetidos pela campanha: "A felicidade vem de dentro…de casa!"

Um olhar para este género de mensagens e campanhas remete-nos para o muito que se poderia retirar deste exemplo para o âmbito da relação com o nosso corpo (a nossa outra “casa”) e os comportamentos a ele ligados. Privilegiar a intimidade, com o consequente afastamento da vida social desgastante e incontrolável, encontra neste âmbito vantagens óbvias. Imagine o leitor como receberia uma mensagem tipo “Viva mais o seu corpo”. Dá que pensar... O que implica viver mais o corpo? Em vez de o evitar ou de o tentar alterar, vestir de acordo com padrões e estereótipos socais, trata-se de simplesmente perceber de que forma este corpo e os comportamentos por ele mediados (como me alimento? como movimento o meu corpo?) reflectem a imagem que temos de nós, aquilo de que gostamos e que nos dá conforto, equilíbrio e paz interior.

Imagine-se a decorar uma casa com cores de que se calhar nem gosta muito, só porque estão na moda, ou a colocar colchas e almofadas que lhe ofereceram só para não fazer desfeita, ou a deitar fora móveis de que até gostava só porque leu algures que a tendência é minimalista. Ou então a achar que perder tempo e dinheiro com a casa não vale a pena pois “afinal, é só mesmo para dormir!”. Assim não espanta que o regresso de férias, as rotinas e o quotidiano custem tanto. Neste caso, a “vivência” deste espaço, longe de criar equilíbrio é fonte de alienação. Traço comum às pessoas que realmente se sentem bem nas suas casas é o facto de sentirem que estas reflectem a sua identidade. E isto não acontece por acaso, mas porque todas as escolhas foram feitas nesse sentido e os pormenores pensados para servir necessidades e gostos quotidianos. Por exemplo, uma reportagem recente dava exactamente conta do facto de cada vez mais pessoas darem preferência à cozinha como sala de estar e partilha e nela investirem cada vez mais.

O mesmo se passa com esta outra nossa casa, o nosso corpo. Também importa não o sobrecarregar com “decorações” que pouco ou nada nos dizem. Qual o corpo (e roupas, calçado, acessórios, maquilhagem) que melhor me traduz enquanto pessoa? Quero a cintura de X cm ou quero ser capaz subir as escadas sem ter de ficar sem ar? Viver o corpo implica centrar-se naquilo que ele realmente permite experienciar. Consegue imaginar alguma sensação que não seja mediada pelos órgãos sensoriais (e portanto corporais)? Raramente o valorizamos assim, preocupados que estamos em viver inúmeras solicitações externas que vamos tendo (mas mesmo essas passam todas pelo corpo).

Estar em paz connosco próprios. Tratarmo-nos bem. Comer em consonância com as nossas reais necessidades. Movermo-nos, exercitarmo-nos e apreciarmos o movimento que o nosso desenho corporal permite (e é tão grande o potencial de expressão aqui envolvido). Tal como viver realmente a nossa casa implica gostar de nela estar, e isso pode implicar alterações que têm de ser pensadas para nos reflectirem realmente, também a vivência do nosso corpo e do nosso peso deve merecer o necessário e cuidadoso investimento.

À semelhança do veiculado na campanha para as nossas casas, mas desta feita sem qualquer interesse económico ou comercial envolvido, fica o apelo para investirmos também em outros espaços interiores – desta vez no território dos comportamentos, atitudes e emoções – que se traduzam em maior equilíbrio e conforto, ilustrados por uma cor cada vez mais própria.

 

*Psicóloga e investigadora, Faculdade de Motricidade Humana