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O apocalipse de Charlie Sheen, em directo

Era o actor mais bem pago da televisão norte-americana, mas foi traído pelo seu comportamento errático alimentado a álcool e drogas. O mundo assiste a todos os pormenores, sem censura, da sua vida, ele que já tem quase três milhões de seguidores no Twitter. A sua mensagem principal é: estou a ganhar.

Alguém escreveu, 'o Inferno é a impossibilidade da razão.' É o que este sítio parece, o Inferno." Podia ser mais um devaneio de Charlie Sheen em 140 caracteres, ou menos, no Twitter, onde tem quase três milhões de seguidores (pode ter mais quando estiverem a ler este texto), mas não é. É de uma cena de Platoon, Os Bravos do Pelotão, onde o jovem soldado Chris Taylor (Sheen), numa das cartas à avó, fala da sua vida na guerra do Vietname. Mas, olhando para Sheen, a sua vida actual parece mesmo a "impossibilidade da razão". Passou de actor mais bem pago da televisão norte-americana, a ganhar 1,8 milhões de dólares por cada episódio da sitcom Dois Homens e Meio, para mais uma celebridade em colapso. Mas ele aproveita-se disso.

Sheen estará, provavelmente, no auge da fama. Nos anos 80, quando era ainda um actor promissor, depois da sua dupla colaboração com Oliver Stone em Platoon e Wall Street, Sheen nunca atingiu o nível de notoriedade que tem actualmente. Nunca esteve tão exposto e nunca nenhuma celebridade do cinema, música ou desporto se terá exposto tanto. Ao contrário de quase todas as celebridades, Sheen não tem um relações públicas (RP) para controlar a informação que circula sobre si - o seu RP de muitos anos, Stan Rosenfield, despediu-se por causa de uma entrevista de Sheen em que insinuava que Rosenfield mascarou um internamento hospitalar após o actor ter destruído um quarto de hotel em Nova Iorque como "reacção alérgica". "Estava a dormir quando saiu esse comunicado. Se eu tivesse falado com o Stan, tinha inventado qualquer coisa melhor", disse Sheen.

Sheen, 45 anos, assume-se agora, sem complexos, como o paladino da verdade. Não esconde o seu abuso de drogas e de álcool, fala abertamente sobre o seu consumo regular de sangue de tigre e as suas múltiplas parceiras sexuais. Dispara contra os executivos do entretenimento que antes lhe pagavam um salário milionário e que o despediram porque já não aguentavam mais o seu comportamento. Ele é o Violento Torpedo da Verdade, que é o nome que deu ao seu espectáculo ao vivo itinerante por várias cidades da América e que já está esgotado. Não se sabe exactamente o que será. Mas não faltarão tiradas como, "Estou sob o efeito de uma droga chamada Charlie Sheen", "tenho um cérebro altamente evoluído", ou aquele que assumiu como seu principal pregão: "Estou a ganhar."

Desde vídeos transmitidos em directo na Internet, página no Facebook, conta no Twitter e múltiplas entrevistas, Sheen tem estado em roda livre. E as pessoas querem mais. Desde que mandou o seu primeiro tweet, às 11h43 da noite (hora de Los Angeles, onde vive) de 1 de Março deste ano, Sheen acumulou quase três milhões de seguidores, foi o mais rápido a atingir o milhão de seguidores, e já tinha 100 mil antes de escrever alguma coisa. Apenas tinha a seguinte apresentação na coluna da direita: Born Small... Now Huge... Winning... Bring it...! (unemployed winner) ("Nasceu pequeno... Agora enorme... A ganhar... Quantos são...! (vencedor desempregado)").

Dois e meio menos um

Depois de uma carreira cinematográfica com altos e baixos (ao ritmo da sua vida), Sheen encontrou conforto e fortuna na televisão, primeiro em Spin City, depois em Dois Homens e Meio, em que, basicamente, interpretava uma versão light dele próprio, também chamada Charlie, um mulherengo hedonista e alcoólico que vive com o irmão (Jon Dryer) e o sobrinho (Angus T. Jones). Em 2003, Dois Homens e Meio ocupou o lugar de segunda à noite na grelha da CBS deixado em aberto por outra popular sitcom de risos enlatados, Everybody Loves Raymond, e, durante oito temporadas, foi um enorme sucesso.

E, até Fevereiro do ano passado, parecia ir sobrevivendo à vida errática de Sheen. Após uma festa prolongada por vários dias, o actor deu entrada num centro de reabilitação e a a produção da série foi suspensa. Sheen regressou no mês seguinte, mas dando a entender que iria deixar a série no final da sétima temporada, porque achava que ganhava pouco, mas haveria de assinar um contrato para mais duas épocas, a cerca de 1,8 milhões por episódio - cada temporada normal tem 24 episódios, o que valeria a Sheen 43,2 milhões por temporada.

Sheen voltou a ser internado numa clínica de reabilitação em Janeiro de 2011 e a produção voltou a ser interrompida. Mas só se começou a falar de despedimento quando Sheen entrou em directo num programa de rádio e começou a insultar os produtores. I'm dealing with fools and trolls ("estou a lidar com parvos e ogres"), afirmou nessa intervenção sobre os executivos da Warner Bros e da CBS, tendo como principal alvo Chuck Lorre, o criador da série.

Sheen referiu-se a Lorre pelo seu nome judaico e tal foi interpretado como um comentário anti-semita. Mas, numa entrevista recente ao programa 20/20, da ABC, negou qualquer conteúdo anti-semita nas suas declarações e até pediu desculpas (mas sem se mostrar demasiado arrependido) a Lorre. "Peço desculpa se te ofendi, não sabia que eras tão sensível", referiu o actor, que deseja recuperar o seu papel na série, mas que vai avançar com um processo judicial aos produtores e está à espera de uma indemnização de 100 milhões de dólares.

"Estou desempregado. Tenho uma família para sustentar", afirmou na mesma entrevista, reconhecendo não estava à espera de ser despedido da série, considerando a decisão dos produtores em livrar-se dele como "radical". Ainda assim, apesar de esperar ainda voltar à ABC e a Dois Homens e Meio, Sheen, logo após ser despedido, sugeriu como seu substituto Rob Lowe, um amigo de infância, também ele uma celebridade de vida muito pública que passou por um mau bocado - álcoolismo, escândalos sexuais - antes de encontrar a redenção (também ele) na televisão, como um d' Os Homens do Presidente, ao lado do pai de Charlie, Martin Sheen.

Porno Sheen

Charlie Sheen teve uma entrada relativamente fácil no mundo do espectáculo. Nasceu Carlos Erwin Estévez, nome de sonoridade galega, herdado do avô paterno, emigrante espanhol no EUA - segundo conta, nasceu asfixiado com o cordão umbilical e teve de ser reanimado. O pai, Ramón Gerardo Antonio Estévez, também não é conhecido pelo seu nome de baptismo. O público conhece-o como Martin Sheen, ultimamente mais famoso como o Presidente Josiah Bartlett em Os Homens do Presidente, mas que se tornou conhecido em Badlands/Os Noivos Sangrentos (1973), de Terence Mallick, e como o Capitão Willard em Apocalipse Now (1979), de Francis Ford Coppola.

Carlos/Charlie foi o único entre os quatro irmãos a adoptar o apelido de palco do pai. Todos os outros também deram em actores e mantiveram o apelido galego, mas, para além de Charlie, apenas Emílio Estévez ganhou algum protagonismo como actor (O Clube, Repo Man, Jovens Pistoleiros) e realizador (Bobby) - Emílio, três anos mais velho, e Charlie foram figurantes em Apocalipse Now, a primeira de várias vezes em que trabalhariam juntos, e ambos trabalhariam várias vezes com o pai.

Depois de uma breve (e premonitória) presença no filme O Rei dos Gazeteiros (é um jovem delinquente preso por tráfico de drogas), Charlie Sheen teve, aos 21 anos, a sua grande oportunidade em Platoon, como um jovem e virtuoso soldado na guerra do Vietname. Já tinha no currículo o seu filme de guerra, tal como o pai, que quase morrera de ataque cardíaco durante as alucinantes filmagens de Apocalipse Now. Martin e Charlie juntaram-se no ano seguinte em Wall Street (que teve uma sequela em 2010 em Money Never Sleeps, apenas uma pequena participação de Charlie).

A carreira de Charlie Sheen parecia lançada para grande sucesso, mostrando também talento para a comédia em Major League/O Ano Louco dos Índios (1989), em que interpreta um jogador de basebol (desporto que praticou no liceu) com a alcunha Wild Thing - mais tarde entraria na série cómica Hot Shots!, paródia a filmes como Top Gun ou Rambo. Ele já era do tipo irrequieto, a contrastar com o conservadorismo católico do pai. Aos 11 anos fumou pela primeira vez marijuana e perdeu a virgindade aos 15. Quando se tornou uma "estrela" em Hollywood, Sheen já estava instalado no circuito das festas em alta rotação.

Sheen ganhou a reputação de party boy mas parecia relativamente inofensivo até ao momento em que começou a resvalar para a violência. O primeiro indício aconteceu em 1990, quando disparou acidentalmente sobre a sua namorada da altura, a também actriz Kelly Preston (actual mulher de John Travolta), acertando-lhe no braço, e a relação acabou logo ali. Em 1995, casou-se pela primeira vez, com a modelo Donna Peele, mas acabou em divórcio pouco mais de um ano depois.

Nessa altura, Sheen foi um dos envolvidos no escândalo Heidi Fleiss, que geria um negócio de prostituição de luxo em Hollywood. Sheen era um dos seus clientes famosos e o próprio confessou que recorria a prostitutas, algo que ainda hoje admite sem rodeios. "Não é preciso conversa de chacha", contou na entrevista à ABC.

Sheen tornou-se, aliás, conhecido por gostar de namorar com actrizes de filmes pornográficos. Uma delas, Ginger Lynn, tem à venda no seu site, entre peças de roupa interior e polaroids privadas, artefactos da sua relação com Sheen: uma carta escrita enquanto ele estava numa clínica de desintoxicação e uma camisa com que foi entrevistado para a revista People. Ambos estão à venda por 500 dólares. Uma das mulheres com quem vive actualmente é também uma actriz porno, Bree Olson, a quem Sheen chama uma das suas "deusas" - na mesma casa vive também uma modelo de biquínis, Natalie Kenly, que garante que não dormem os três na mesma cama.

Ainda assim, Sheen considera-se um homem de família e procura manter os filhos dentro da esfera privada. "Quero manter uma pequena parte da minha vida fora do TMZ [site de notícias sobre celebridades]", diz. Pode dizer-se que Sheen até tentou uma vida normal, casando com a actriz Denise Richards em 2002. Tiveram duas filhas em conjunto e separaram-se em 2005, com Richards a acusá-lo de abusos físicos e verbais, e consumo de drogas e álcool. Em 2008, Sheen voltou a casar-se com Brooke Mueller, com quem teve dois filhos (gémeos), mas separaram-se no ano seguinte.

Britney, Lindsay, Mel

Claro que Charlie Sheen não é a primeira celebridade a entrar em parafuso mesmo em frente aos nossos olhos. Os exemplos são muitos. Michael Jackson foi uma "estrela" até na morte, mas também criou a aura de ser extraterrestre com o seu comportamento excêntrico. Se foi tudo uma fabricação cínica ou ingenuidade verdadeira, nunca saberemos. As passagens de Britney Spears e Lindsay Lohan pela "impossibilidade da razão" também foram bem documentadas, desde que eram meninas bem comportadas até à sua fase naugthy fora de controlo. Britney era a eterna virgem, namorou com Justin Timberlake, fez-se vamp, casou-se com Kevin Federline, teve vários filhos, separou-se, rapou o cabelo, andou nas festas com Paris Hilton, deixou-se fotografar sem cuecas. Lindsay, depois de também ter sido uma "estrela" em criança, evoluiu para uma sucessão de escândalos envolvendo álcool, drogas, pro messas de desintoxicação e recaídas.

Dos casos mais recentes, Mel Gibson será, talvez, o mais surpreendente. O actor norte-americano sempre mostrou uma faceta pública de homem conservador (mas com passado de consumo de álcool, segundo um perfil recente de Gibson na Vanity Fair), o seu casamento era um modelo de estabilidade (ao contrário do que acontece em Hollywood), apesar de não se manter fora da polémica, com as acusações de anti-semitismo por A Paixão de Cristo. Mas os seus amigos judeus sempre o defenderam e o surpreendente êxito de bilheteira para um filme falado em aramaico sobre as últimas horas da vida de Cristo (600 milhões de dólares nas bilheteiras) consolidou o seu estatuto como uma grande força no cinema.

Até uma noite em Julho de 2006, em que Gibson foi detido em Malibu por excesso de velocidade. Tinha uma garrafa de tequila no banco do lado e o nível de álcool no sangue estava bem acima da lei. Quando foi abordado pelo agente que o mandou parar, Gibson terá dito o seguinte: "Judeus de merda... Os judeus são os responsáveis por todas as guerras do mundo." Depois disto, foi boicotado pela indústria do entretenimento, divorciou-se após um casamento de 26 anos e envolveu-se com Oksana Grigorieva, uma pianista e cantora russa.

Mas esta relação foi bem mais curta. Ainda tiveram uma filha juntos, mas Grigorieva acusou Gibson de lhe dar um murro e de lhe ter partido os dentes da frente. Em Julho passado foi tornada pública a gravação de uma chamada de Gibson à russa em que lhe fazia ameaças e a insultava. "Pareces uma cadela com o cio, se fores violada por um grupo de negros, a culpa é tua", disse Gibson. Tem sido uma travessia no deserto para o actor/realizador de Braveheart, que tenta este ano um regresso à ribalta com dois filmes. Um deles realizado e protagonizado por Jodie Foster, The Beaver, sobre um homem que usa um fantoche de um castor para comunicar com a família. Foster é grande defensora de Gibson. "Assim que o conheci, sabia que ia amá-lo para o resto da minha vida", admitiu a actriz.

Charlie Sheen também é daqueles que são defendidos sem reservas pelos amigos e pela família, sendo que o pai Martin o trata como um viciado que precisa de ajuda. "Se ele tivesse cancro, como é que o tratávamos? O vício é uma forma de cancro", afirmou recentemente Sheen sénior. Charlie, por seu lado, garante que deixou de consumir drogas, mas não garante que não haja alguma coisa escondida algures na casa onde vive com as duas namoradas.

Greta Garbo queria que a deixassem sozinha, limitava muito as suas entrevistas, não respondia às cartas dos fãs e evitava ser fotografada. Sheen está no extremo oposto de Garbo. Quando sugeriram a Sheen, numa entrevista, que poderia ser bipolar - uma doença mental caracterizada pela alternância de períodos de profunda depressão e de extrema excitação -, o actor disse que não era bipolar mas "bivencedor". É ele que chama os media e o público. E ambos vão atrás. Com o Twitter e outros instrumentos, Sheen não precisa de intermediário para atear o rastilho à sua dinamite. O horror. O horror. E depois vem a grande explosão.

Texto originalmente publicado na Pública