Nutrição
Pode uma laranja curar a apendicite?
O nutricionista Vítor Dauphinet meteu-se na máquina do tempo e regressou a 1987 para conversar com o seu mestre, Emílio Peres.
No longínquo ano de 1987, ao cair do pano de mais um dia na Invicta, estudantes de capa e batina abandonam a cantina onde jantaram, acercando-se do café onde habitualmente se reúnem. À volta de um “cimbalino”, põem a escrita em dia e partilham o que os entusiasma, quando um deles capta a atenção dos seus pares.
Citando os argumentos do Professor Emílio Peres – conhecido como “o pai dos nutricionistas” –, o estudante justifica a importância da alimentação na prevenção da doença. Subitamente é interrompido pelo "19,5" – alcunha de um dos alunos cuja média de ingresso se colou ao personagem – que tentando ridicularizar os seus argumentos, perguntou em jeito de afirmação:
– Não me vais curar uma apendicite com uma laranja, pois não?
A pergunta gerou uma gargalhada nervosa na mesa e a conversa mudou rapidamente para assuntos mais triviais.
Três décadas depois, a questão não perdeu atualidade, pois a lógica que ainda vigora na saúde, está para as doenças que mais matam e incapacitam, como a dita laranja está para a cura da apendicite. Como seria de esperar, o bisturi e os medicamentos não param uma epidemia cuja causa não corrigem – a má alimentação e modo de vida insalubre.
Que o digam as doenças do coração, que desde o século passado, continuam firmes e inamovíveis no pódio das que mais nos atormentam, apesar dos remédios cada vez mais sofisticados e prescritos, não isentos de “efeitos adversos”, tais como o agravamento da insustentabilidade financeira do Sistema Nacional de Saúde (SNS). Alguns clamam contudo vitória, pois segundo rezam as estatísticas, estamos a viver mais.
Nem só de comida nos alimentamos
Pergunto-me o que diria o Professor Emílio Peres de tudo isto. Ele que foi um grande pensador, reformador e homem de ação, na saúde e nas ciências da nutrição… mas que diabo! Pensando bem, o que me impede de o rever? É que nem só de comida se alimenta um homem e até para isso precisamos de continuar a imaginar. Se bem pensei, melhor o fiz. Meti-me no DeLorean DMC-12 modificado, a máquina do tempo do filme Back to the Future; selecionei o ano, 1987; o local de chegada, a Faculdade de Ciências da Nutrição do Porto; e fui!
Baaaaam! – ruído ensurdecedor da maquineta a funcionar.
– Uau, já cheguei!
Saí da engenhoca e escondi-a rapidamente dos olhares indiscretos. Parti à procura do Professor Emílio Peres e tive sorte! Encontrei-o a sair de mais uma eloquente aula rodeado de alunos. Não perdi tempo e disparei.
Fake news!
– Professor, venho do futuro e não trago boas notícias da saúde no século XXI.
– Então, pá? – exclama o Professor.
– São as doenças crónicas, que se tornaram uma verdadeira epidemia.
– Estás a falar das doenças cardiovasculares, cancro, diabetes e da obesidade?
– Sim Professor, é isso mesmo!
– Mas no futuro não está mais que provado que estas doenças são largamente evitáveis se andarmos “bem comidos e bem bebidos”?
– Claro que sim, Professor! Em 2009 foi publicado um estudo de referência, o EPIC -Potsdam Study, que confirmou tudo o que sempre nos ensinou.
– Fala-me disso Vitor!
– Este estudo mostrou que a alimentação e estilo de vida saudável são capazes de reduzir as doenças crónicas em quase 80%! Acresce que estes resultados foram repetidamente confirmados por outros estudos que lhe seguiram em 2010, 2011, 2014 e 2015.
– Então qual é a causa desta epidemia?
– Vivemos uma pós-verdade alimentar, Professor.
– O que é isso, pá?
– Apesar de comer bem estar muito em voga, as pessoas estão desorientadas, pois a cada momento há uma nova tendência alimentar sem fundamento científico.
– Como por exemplo, Vitor?
– Há modas para todos os gostos, como a dos alimentos sem glúten, sem lactose ou da dieta do paleolítico, que não limita o consumo de carnes vermelhas e se opõe aos legumes e cereais.
– Dieta do paleolítico? Vai no Batalha! – exclama o Professor ao jeito tripeiro, para continuar incrédulo – Mas que grande balburdia, pá!
– É o resultado das táticas da indústria alimentar…
– Que táticas, Vitor?
Big food, big tobacco
– No futuro, Professor, estas multinacionais financiam estudos, que favorecem invariavelmente os alimentos que vendem, contradizendo a investigação independente e os guias alimentares nacionais. Face a esta contradição, a população empanturra-se de verdades alternativas.
– Não estás a exagerar meu caro?
– Então leia este artigo que lhe trouxe, Professor. Estas multinacionais também investem muito no lobbying e na propaganda, à imagem do que fez a indústria do tabaco para ocultar os seus efeitos nefastos. Acredita que em Portugal a Coca-Cola e a McDonald's estão entre os grandes patrocinadores do Congresso Nacional dos Nutricionistas, e também fazem simpósios sobre alimentação?
– Estás a brincar, pá!
– Não estou, não! Em alguns países como no Brasil, já foram tomadas medidas contra isso. Contudo, em Portugal ainda não se fez o mesmo, apesar de o assunto já ter sido notícia na imprensa.
– E a obesidade?
– Ninguém pára a obesidade, Professor. Mas ao contrário do que se diz, esta não resulta da falta de empenho pessoal, mas sim da oferta alimentar, que é condicionada por interesses económicos mundiais, antagónicos à saúde das populações.
Para grandes males, velhas soluções
– Mas não é preciso que o mundo mude, para mudar na nossa casa, Vitor. Não sei se te lembras, mas há muito que falo nas minhas aulas de um médico americano chamado Ancel Keys, que iniciou em 1958 um estudo que descobriu a relação entre a alimentação e as doenças do coração.
– Lembro-me perfeitamente, Professor. Esse médico é considerado o “pai” da dieta mediterrânica.
– Isso mesmo, meu caro. Entretanto, em 1972, os finlandeses desenvolveram uma intervenção nacional, centrada nas recomendações alimentares e de estilo de vida deste americano, com vista à prevenção das doenças do coração, chamada “The North Karelia Project”. Os resultados estavam a ser promissores. Tens notícia do que entretanto se passou?
– Tenho sim, senhor. Em Dezembro de 2016 saiu um artigo que explora precisamente a adaptação dessa iniciativa a outros países, pois os seus resultados foram um enorme sucesso.
– Fala-me dos números, pá!
– A mortalidade por doença coronária diminuiu em 84% na Carélia do Norte (onde o problema era mais grave) e em 82% em toda a Finlândia. E o grande responsável por estes resultados foi a mudança de alimentação e estilo de vida, pois os tratamentos apenas contribuíram em 23% para a redução da mortalidade no país.
– Vitor, isso são notícias da maior relevância! – refere ajeitando os seus óculos, para depois concluir – Está então provado que ajudando as pessoas, estas aderem às mudanças que derrotam o principal assassino da população!
Tomates e tripas à moda do Porto
– Pois é, Professor, mas no futuro o SNS continua “enquistado” na estratégia dos tratamentos, gastando cem vezes mais neles do que em prevenção. Como podemos mudar a sua cultura?
– Meu caro, eu estou no passado a cumprir o meu destino, só posso esperar o melhor da tua geração.
– Mas esta conversa é uma fantasia, Professor.
– Então imagina o que eu te diria, pá – responde com o sorriso que o caracteriza.
Eu faço uma pausa e atiro:
– Eu acredito que me diria que conhecimento não é poder, a menos que seja usado, e para isso é preciso tomates!
– Ah! Ah! Ah! Agora tiveste piada, Vitor, mas são as tuas palavras.
– E também acho que me diria que não precisamos de mais investigação científica. Que precisamos é de ação, de tornar o acesso à alimentação saudável num desígnio democrático, pois quem come pior são precisamente os mais desfavorecidos.
– Não está mal, meu caro, não está mal...
– E que para tanto, basta replicar os exemplos de sucesso como o finlandês e deixar de culpar a população por ser gorda e não comer bem.
– Parece-me que já sabes por onde ir, Vítor, e como viste é tudo uma questão de bom senso. E para seduzires quem manda, importa não complicar, pois como dizia o Professor Agostinho da Silva, o poder "não passa de uma vaca: devemos dar-lhe palmadas no rabo e tentar tirar-lhe o leite, é para isso que ele serve". Agora toca a “vergar a mola”, senão nem de aqui a 30 anos!
Ao tentar abraçá-lo para me despedir, o Professor exclama:
– Espera aí, meu caro! Antes de partires, vamos comer umas tripas à moda do Porto, porque não se pode trabalhar bem de barriga vazia!
– Com todo o prazer, Professor!
Já a caminho do restaurante, não resisto e comento:
– A propósito, quero dizer-lhe que em 2015 a Assembleia da República instituiu o Dia Nacional da Gastronomia, e que devido a essa efeméride, as virtudes nutricionais do prato que vamos agora comer foram alvo de grandes elogios.
O Professor pára, sorri e diz, pousando calmamente a mão sobre o meu ombro.
– Como vês, há boas razões para acreditar no futuro, Vítor. Vamos a isto?
E lá fomos!
Singelo mas sentido tributo à memória do Professor Emílio Peres (1932-2003), que fez a diferença no seu tempo, para que o seu exemplo não caia no esquecimento dos que vivem distraídos ou resignados com a realidade.
Vítor Dauphinet
Licenciado em Ciências da Nutrição e Alimentação, pela Universidade do Porto