Activistas levantam legumes de plástico e escavadoras de brincar sobre um mapa do continente africano, em Tóquio.
Activistas levantam legumes de plástico e escavadoras de brincar sobre um mapa do continente africano, em Tóquio. Por Kim Kyung Hoon

Nutrição

Genes & alimentação: o que mudou desde o homem das cavernas?

Somos uma geração do século XXI, geneticamente próxima do Paleolítico, a viver com profundas modificações da alimentação e novos padrões de estilo de vida que nos empurram para as “doenças da civilização”.

Pensa-se que há cerca de dois milhões de anos atrás, na África subsariana, os indivíduos do género Homo mudaram a sua alimentação, passando de um modelo em que as fontes de energia se centravam mais na ingestão de frutas para um arquétipo de alimentos que cresciam na terra, como rebentos de plantas, bolbos e tubérculos. E admite-se que quase todos os genes e mecanismos epigenéticos que exibimos terão sido seleccionados do Homem moderno surgido em África há cerca de 100.000 a 50.000 anos atrás. A evolução genética continuou, e um dos seeus exemplos mais interessantes em nutrição é o da retenção da capacidade de digerir a lactose (um “açúcar” do leite), depois do desmame e ao longo do estado adulto, em certas populações.

Para ser utilizada, a lactose tem que ser digerida pela lactase, uma enzima produzida no intestino, mas 70% a 80% da população mundial apresenta baixos níveis de lactase. Aliás, considera-se normal a “não-persistência” de produção de lactase pouco tempo depois do desmame. Na Europa, essa “não-persistência” aumenta de Norte para Sul (pode registar uma prevalência de 3% na Escandinávia e 71% na Sicília), mas é surpreendente que alguns grupos conservem, toda a vida, uma actividade lactásica elevada.

Entre as hipóteses para explicar essa persistência inclui-se a pressão evolutiva devido à dificuldade que certas populações – como a colónia viking da Gronelândia, onde eram frequentes as doenças ósseas pela falta de cálcio - teriam em obter luz do sol suficiente para fabricar vitamina D, necessária para aproveitar o cálcio e construir massa óssea. Tolerar bem a lactose e o leite, e assim dispor de mais cálcio, poderia ser uma grande ajuda.

Mas a criação de animais produtores de leite pode também ter contribuído com alguma pressão selectiva ao dar vantagem a indivíduos que, enquanto adultos, eram capazes de utilizar os lácteos como alimentos e assim ficavam em franca vantagem nutricional e de sobrevivência relativamente aos que não os consumiam. Curiosamente, em áreas sem tradição de criação animal para produção de leite, como a China ou a África tropical, poucos adultos digerem a lactose.

Evoluímos e a nossa alimentação tornou-se progressivamente mais distante dos modelos ancestrais. Em particular, investigadores como Loren Cordain reconhecem que as modificações introduzidas durante os períodos Neolítico e Industrial produziram maior carga de açúcares, com a correspondente exigência de trabalho dos órgãos que os regulam. Mas também mais gorduras saturada e trans e escassez de ómega-3, perda de protagonismo de frutas, hortícolas (incluindo os “selvagens”), carnes de animais selvagens (muitas vezes mais magras) e pescado, com menor riqueza vitamínica e mineral.

Nesses períodos aumentou ainda a tendência acidificante da alimentação (por oposição, uma alimentação mais alcalinizante pela escassez de alimentos de elevada densidade energética pode ajudar a prevenir doenças crónicas como a osteoporose e promover a função renal) e o conteúdo de sal, tendo, por outro lado, baixado a ingestão de fibras.

Numa escala evolutiva, estas modificações são demasiado recentes para as características metabólicas que possuímos. Somos, assim, uma geração do século XXI, geneticamente próxima do Paleolítico, a viver com profundas modificações da alimentação, em que novos padrões de estilo de vida nos empurram para as actualíssimas “doenças da civilização”.

pedromoreira@fcna.up.pt
*Nutricionista e Professor Catedrático da Faculdade de Ciências da Nutrição da Universidade do Porto