Rui Gaudêncio

Nutrição

Afinal, o leite não é só para crianças

O Homem é, de forma espontânea, o único animal que se alimenta de leite depois do desmame. Esta capacidade é, sob o ponto de vista histórico, bastante recente remontando há menos de dez mil anos atrás. Sendo uma aparente “artificialidade”, este hábito tem suscitado bastante controvérsia no que diz respeito ao valor alimentar e nutricional do leite e seus derivados.

Convirá referir que os indivíduos que possuem a mutação que lhes permite digerir o açúcar do leite (lactose) depois do desmame e durante a idade adulta, retiram dela uma evidente vantagem competitiva relativamente aos outros que não o conseguem consumir (intolerantes à lactose). Um exemplo flagrante é o da tribo Masai, oriunda do Leste Africano. Os Masai, que registam um elevado consumo de leite em natureza ou fermentado, apresentam geralmente níveis de saúde cardiovascular invejáveis e a sua maior estatura e força permitiu-lhes ser a tribo dominante nessa região desde esses tempos.

Calcula-se que apenas 30% da população mundial seja tolerante ao leite, sendo que os restantes 70% possuem algum grau de incapacidade de digestão da lactose, pelo que para estes será mais indicado procurar alimentos alternativos, como o leite de soja.

Para os que não têm este problema, o consumo de leite e seus derivados tem sido amplamente estudado, mas as conclusões nem sempre são claras e têm propiciado aceso debate acerca da mais valia destes produtos na nossa alimentação. A prestigiada Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, recomenda que se limite o consumo de leite, iogurte ou queijo a uma ou duas porções por dia, mas um trabalho recente de investigadores dessa mesma instituição revela que o consumo de leite e queijo não está associado a ganho de peso na vida adulta. Muitos dos argumentos contra o consumo de leite apoiam-se no seu elevado teor em gordura saturada, sendo, deste modo, mais prudente utilizar o leite ou iogurtes magros.

A mais recente versão da pirâmide alimentar norte-americana inclui os lacticínios e, tal como a Roda dos Alimentos portuguesa, prevê o consumo de duas a três porções de leite, queijo ou iogurte por dia. A Dieta Mediterrânica, paradigma de um modelo alimentar saudável, consagra também o consumo de queijo em quantidades moderadas. O queijo é, aliás, um alimento que apesar do teor elevado de gordura e por vezes de sal, não parece trazer prejuízos a nível cardiovascular se consumido com regra. Este facto demonstra, uma vez mais, que os alimentos são mais que a mera soma dos seus constituintes individuais, sejam nutrientes ou não.

O consumo de leite fermentado, como o iogurte ou o kefir, é muitas vezes associado a melhores níveis de saúde. São bem conhecidos os relatos históricos da invulgar longevidade de algumas populações do Cáucaso e da sua relação com o consumo de iogurte. A ciência moderna tem sido capaz de provar alguns dos efeitos benéficos destes produtos da fermentação do leite a diversos níveis, sendo que o consumo de iogurte se revelou, por exemplo, estar associado a menores ganhos de peso em adultos.

A saúde óssea é um dos pontos que mais pode beneficiar do consumo de leite e seus derivados. A osteoporose e os problemas que dela resultam, como as fracturas ósseas, constituem um pesado fardo na saúde das populações, especialmente entre os mais idosos. O consumo regular de lacticínios, pelo seu teor elevado de cálcio, ajuda, comprovadamente, a minimizar este problema, embora seja igualmente necessário que haja um aporte adequado de vitamina D.

Para os que podem ingerir lacticínios, evitá-los com base no argumento de que o Homem não está ”preparado” para os ingerir depois do desmame, é um argumento que, no estado actual do conhecimento, não tem validade científica. Ser capaz de integrar na alimentação, com equilíbrio, os muitos alimentos disponíveis, acaba sempre por se revelar como a opção mais razoável.

*Nutricionista e professor
Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação Universidade do Porto nunoborges@fcna.up.pt