Polémica
A princesa Leonor gosta de Kurosawa. É assim tão estranho numa criança de 11 anos?
Quando confessou o seu gosto por cinema japonês, a futura rainha de Espanha viu-se no meio de uma tempestade no Twitter.
A futura rainha de Espanha tem 11 anos e é fã do filme Derzu Usala do realizador japonês Akira Kurosawa. Foi o que disse à revista espanhola Tiempo, que puxou para a capa as preferências de Leonor: “Lê Stevenson e Carroll, gosta dos filmes de Kurosawa, domina o inglês e tem uma cadela chamada Sara.” Estas revelações causaram uma onda de choque nas redes sociais. De um lado os que não acreditam que seja possível uma criança ter estes gostos culturais e dizem que o discurso foi forjado; do outro os que lamentam a falta de cultura de quem critica a princesa. É assim tão estranho uma criança ocidental gostar de cinema japonês?
O filme em questão, de 1975 e que ganhou o Óscar para melhor filme estrangeiro, já passou pelo menos duas vezes na Cinemateca Júnior, em Lisboa. Neste, Kurosawa filma a história de um explorador russo que se torna amigo de um caçador local, durante uma expedição à Sibéria. “Não acho de todo descabido uma miúda de 11 anos estar apaixonada por um Kurosawa”, começa por dizer Neva Cerantola, coordenadora de actividades da Cinemateca Júnior.
Para Madalena Wallenstein, coordenadora da Fábrica das Artes do Centro Cultral de Belém (CCB), em Lisboa, “se uma miúda de 11 anos tem a possibilidade de ficar implicada com essas obras é porque têm assuntos que são transversais à humanidade, independentemente da idade”.
Segundo a coordenadora da Cinemateca é "natural" que as crianças se interessem por histórias de aventura, viagem e mundos longínquos, mesmo que não sejam retratadas nos formatos que aparecem mais frequentemente na televisão. Quando foi mostrado, num atelier da Cinemateca Júnior, um excerto do documentário Nanook, o Esquimó (de 1922) – que conta a história de uma família do Pólo Norte –, lembra Cerantola, as crianças foram mais tarde pedir aos pais para ver o resto em casa. No caso de Dersu Uzala, apenas a longa duração do filme fez com que alguns dos mais novos se cansassem e quisessem rapidamente chegar ao final — “no sentido de ver o fim da história”.
Na Cinemateca Júnior há miúdos de sete ou oito anos que gostam de Charlot, dos irmãos Marx e de alguns filmes de John Ford, garante Neva Cerantola. Frequentemente, percebe que são filhos de “pais cinéfilos, que filtram, educam, vão ao cinema e escolhem por eles”.
Boas referências culturais
Na notícia, a princesa falava sobre alguns dos seus autores preferidos, nomeadamente Lewis Carroll, J. R. R. Tolkien, Roald Dahl e James Matthew Barrie, e revelava que gostava de ir ao teatro com a mãe e de praticar ballet. Não esquecer que Leonor e a irmã Sofia são filhas de um príncipe e de uma ex-jornalista.
“É uma criança igual às outras, que deve ter boas referências culturais”, supõe Madalena Wallenstein, há muito ligada à programação infanto-juvenil. A coordenadora considera que, por vezes, a dimensão de pensamento dos mais novos é de certa forma infantilizada. “As crianças têm pensamento filosófico e ontológico – pensam sobre existir”, aponta. “Nós é que não queremos ver isso”. Podem contar pelas duas mãos os anos de vida, mas não deixam de ser seres humanos, e como tal, sofrem – perdem pessoas e zangam-se uns com os outros – e têm defeitos. Há uma espécie de parede de vidro que separa os adultos das crianças. Como se as crianças estivessem numa redoma e que só pudessem ser felizes”, acrescenta.
A questão do “normal e anormal” está ligada, então, à necessidade de inclusão social, explica a educadora artística. De certa forma, estamos a cultivar o “cidadão perfeito” e a reproduzir o mundo que já existia antes dele nascer. É natural, indica ainda, que os pais procurem que os filhos atinjam determinadas metas na altura certa. É isso que lhes dá “uma ideia de segurança”, garantindo “que o filho vai ter comida no prato, que vai ter trabalho e sucesso, que vai ser reconhecido pelos outros”.
Quem sabe qual é a idade certa?
No que toca aos tipos de obras ou formas de arte às quais uma criança deve ou não deve ter acesso durante o seu desenvolvimento, cabe indiscutivelmente aos pais tomar a decisão, assegura o psicólogo David Guedes, da Associação Nacional para o Estudo e Intervenção na Sobredotação (ANEIS), que trabalha com crianças com características de sobredotação. Embora não exista um manual de instruções que determine que podem ler uma obra aos nove e outra aos 11 anos, “os pais têm de ir lá pela intuição. Têm de conhecer bem os filhos e perceber que cada criança é única e os níveis de desenvolvimento são muito diferentes — algumas mais precocemente estão preparadas para começar a entrar em certos assuntos”, explica.
Os pais devem fazer com a cultura, literatura e cinema “o mesmo que fazem com as redes sociais”, sugere o psicólogo. É importante estabelecer quais são as linhas vermelhas, de forma a evitar que os mais novos sejam “expostos a uma realidade muito pesada para as capacidades de regulação emocional que têm no momento”, explica.
Claro que falar com profissionais — nomeadamente psicólogos — pode ajudar a esclarecer certas questões e até quebrar alguma insegurança, mas a decisão caberá sempre aos pais — são eles que “estão numa posição privilegiada para conhecer os próprios filhos”, defende. Um pouco de pesquisa, conhecimento e bom senso são os ingredientes básicos necessários.
Há muitas variáveis em jogo e o contexto é igualmente importante. Quando uma criança perde um familiar próximo, por exemplo, ver um filme ou ler um livro que trate dessa temática pode ser um conforto para a mesma, ilustra o pediatra Mário Cordeiro. Ao mesmo tempo, esse tipo de obra poderia ter um efeito contraproducente para quem não estivesse a lidar com o luto.
Noutros casos, a questão não se prende tanto pela natureza imprópria de uma obra, mas sim pela sua complexidade, para a qual as crianças podem não ter ainda maturidade suficiente para compreender. Em todo o caso, “tira-se sempre algum proveito”, garante o pediatra. “Ao ler, as frases ficam dentro da nossa cabeça. Quando vamos falar, ou escrever, o nosso cérebro vai ao armazém buscar o que lá tem.”
Importância do ambiente
Nos primeiros anos de formação, o impacto do contexto familiar é incontestável. David Guedes fala da correlação genes/ambiente. Se uma criança herda “o potencial genético para ter interesses invulgares”, por exemplo, herda ao mesmo tempo “uma série de recursos que permitem também desenvolver esse potencial”.
“É de pequenino que se torce o pepino”, diz um dos ditados mais conhecidos da língua portuguesa. Os primeiros anos de vida são de facto fundamentais na formação de gostos culturais e artísticos — e é sobretudo na infância que os pais têm manobra para intervir nas escolhas dos filhos. “A partir do momento que entram na adolescência, [os pais] passam a ser menos preponderantes e o pares passam a ter, por vezes, um papel mais determinante”, explica o psicólogo. Não quer isto dizer que seja uma influência absolutamente determinante – até porque as crianças estão expostas a vários níveis de influência, nomeadamente através do acesso à Internet.
Neva Cerantola assegura que os adolescentes já são um público mais difícil. Deixam influenciar-se pelos amigos e pelos “rituais massificados”, explica. De acordo com a responsável da Cinemateca Júnior, se não for feito um trabalho anterior — de os expor, neste caso, a bons filmes — será difícil que, mais tarde, adquiram o gosto por cinema de qualidade. “Não vai funcionar, do meu ponto de vista, do que vejo e sinto. Não se vai começar aos 12 ou 13 anos”, indica.
Um balanço entre exposição e escolha
É importante que haja um equilíbrio entre incentivar os filhos a escolher boas referências culturais e conceder aos mesmos liberdade para explorar os seus gostos pessoais. “A obrigação não funciona bem nestes casos”, garante David Guedes. “Acho que os pais devem oferecer os recursos ou torná-los acessíveis, mas não devem fazer disso quase uma segunda escola ou tentarem impor uma certa cultura de forma demasiado impositiva”.
Ao mesmo tempo, é essencial que os próprios pais tenham interesses diversificados e guiem os filhos através do exemplo e não da retórica – o “faz o que eu digo, não faças o que eu faço” também não produz bons resultados. Uma casa com livros, instrumentos musicais e bons filmes é um ambiente bem mais propício a que as crianças se interessem, por exemplo, por aprender a tocar piano ou por descobrir diferentes autores.
A envolvente é fundamental, mas nada acontece por magia e é necessário que os pais estejam dispostos a fazer algum investimento. O tempo, indica o pediatra Mário Cordeiro, é uma componente essencial. “É preciso pais e filhos terem tempo para, não só conversarem sobre o que [o filho] gosta ou deixa de gostar, como depois irem a uma livraria”. A formulação é simples: “Deixá-los escolher e orientar”. Depois é preciso, em certas alturas, “insistir e não ter medo de dizer ‘agora não há telemóvel, não há televisão, vais ler’", conclui.