Aborto
Não falamos sobre aborto espontâneo e isso devia mudar
A jornalista norte-americana Jessica Levy escreve sobre o que lhe aconteceu e apela: "Grite, vai ficar surpreendida ao ver como isso ajuda."
Por um instante, o sangue no papel higiénico não parecia fora do normal. Por um instante, continuei a minha rotina habitual de maldizer em silêncio a minha condição de mulher e preparar-me para ir ao armário dos medicamentos. Por um instante, esqueci-me de que estava grávida.
E depois voltou tudo: o sangue, desta vez acompanhado por lágrimas.
Não houve tempo para fazer o luto depois de uma ecografia confirmar que tinha perdido o bebé. Havia outro filho à espera que o fossem buscar à escola, era preciso comprar vinho para o jantar que íamos ter essa noite e havia um projecto escrito para ser entregue antes da hora de fecho.
Havia protocolos a seguir. O período obrigatório de três meses antes de poder contar que estava grávida ainda não tinha passado, portanto a boa educação e a vontade de evitar embaraços ditaram que o meu luto fosse privado.
No dia seguinte, houve celebrações na sinagoga por causa do Sabbath, em que pessoas enlutadas se levantaram e oraram juntas para chorar em público e receberem o reconhecimento e apoio da comunidade. Eu fiquei sentada.
Houve a festa do bebé de uma amiga. Peguei no seu filho de seis meses ao colo e fugi a perguntas sobre se planeava expandir a família. “Por agora, um já me deixa muito ocupada.” Ninguém quer ser um desmancha-prazeres.
Tive de ir ao baile anual dos Marines. Brindei aos nossos soldados. Sorri e ri-me.
Sorri tanto nessa semana que me doía a cara. Acho que tinha a esperança de que, se tivesse um sorriso extra grande, ninguém iria reparar na tristeza no meu olhar. A hipocrisia tornou-se de mais para mim e deixei de ir à rua, se pudesse evitá-lo. Quando recomecei a sair de casa, inventei desculpas sobre ter estado doente ou ocupada. Havia outras dificuldades que podia ter apontado como desculpas para me manter longe da vista das pessoas, dificuldades sobre as quais era aceitável falar em público.
Numa sociedade onde não faltam cidadãos que se manifestam por estarem muito preocupados com o destino dos nascituros em geral, surpreendentemente há muito pouca compaixão pela perda de um nascituro em particular. Sabemos criticar, mas não temos um guião para consolar.
O meu filho de 3 anos não precisou de nenhum guião. Perguntou-me porque é que eu estava a chorar. Contei-lhe que a mamã tinha um bebé na barriga que se estragou. Ele deu-me um abraço e perguntou se eu queria brincar com a betoneira dele (o seu bem mais precioso). Aceitei. Foi a única coisa, até então, que me ajudou.
Num dia especialmente difícil, quando uma conhecida com uma voz particularmente gentil me perguntou como é que eu estava, desabafei o que tinha acontecido, anunciando ao mesmo tempo a minha gravidez e a minha perda. Quebrei as regras. Ela também, contou-me sobre a sua experiência com um aborto espontâneo. Ofereceu-me companhia. Disse-me que não havia problema em falar sobre o assunto, contou-me a sua história e partilhou a sua dor. Nesse dia, aquela conhecida tornou-se uma amiga.
Reparei num padrão e comecei a mudar a minha abordagem. Não andava à procura de pessoas a quem pudesse contar o que tinha acontecido, mas também não o escondia. A maioria das pessoas não sabia como reagir, mas todas fizeram o melhor que podiam. Às vezes ajudava, outras vezes tornava as coisas piores. Mas era tudo verdadeiro, honesto e humano. Num mundo em que os nossos sentimentos mais íntimos são resumidos com emojis e enviados através de SMS, ouvir amigos a debater-se para encontrar palavras era exactamente aquilo de que eu precisava.
A “regra dos três meses” está ultrapassada. Dizer às mulheres que temos de ficar caladas está ultrapassado.
Estamos a fazer progressos. Mark Zuckerberg revelou publicamente que ele e a mulher, Priscilla, sofreram três abortos espontâneos. Beyoncé e Mariah Carey falaram sobre as dificuldades dos seus abortos espontâneos. Ainda assim, eles são a excepção à regra.
Durante uma gravidez de sucesso, o silêncio obriga-nos a inventar desculpas para estarmos cansadas, por faltarmos ao trabalho, por corrermos para a casa de banho. Durante uma gravidez mal sucedida, o silêncio obriga-nos a sofrer sozinhas. Em ambos os casos, faz com que evitemos pedir ajuda quando precisamos. Num mundo com Facebook e Snapchat, em que partilhar todo o tipo de notícia frívolas é normal, não partilhar as nossas notícias mais sinceras rouba-nos as ligações que dão sentido à vida e rouba aos outros a oportunidade de se chegarem à frente e ajudarem.
Portanto, estou a contar a toda a gente e a gritar a quem quiser ouvir. Tinha um bebé na barriga e ele estragou-se. Grite sobre o seu aborto espontâneo também. Vai ficar surpreendida ao ver como isto ajuda.
PÚBLICO/The Washington Post