Ronald Rammelkamp

Alimentação

A nossa relação complicada com a comida começou com a manteiga

Já alguma vez comeu manteiga à colher? Manteiga sem torradas ou sem ovos estrelados – comer manteiga só pelos seus atributos saborosos e requintados?

Já alguma vez comeu manteiga à colher? Manteiga sem torradas ou sem ovos estrelados – comer manteiga só pelos seus atributos saborosos e requintados?

Elaine Khosrova faz isto com alguma frequência. Coloca vários tipos de manteiga à temperatura ambiente, pega num copo de água para limpar o palato entre cada ronda e corta delicadamente as amostras com curiosidade científica, observando o modo como as diferentes texturas cedem perante a faca. Hoje tem diante dela sete tipos de manteiga, feitos com leite de vaca, de ovelha e de cabra e cujas cores vão de um amarelo solarengo a um suave branco de noiva.

“Vêem como esta é totalmente coesa?” pergunta Khosrova, enquanto corta a primeira amostra, a mais suave – uma manteiga de vaca sem sal fabricada na Nova Zelândia por uma marca chamada Anchor. Khosrova coloca um pedaço de manteiga espessa e amarelo-pálida numa colher.

Autora do livro Butter: A Rich History (Manteiga: Uma História Rica, em tradução livre), Khosrova, que já trabalhou como pasteleira numa publicação sobre restauração, numa cozinha de teste para uma revista e como editora de uma revista sobre queijos, estudou a história da manteiga desde a Idade da Pedra. Residente em Hudson Valley, em Nova Iorque, ela decidiu conhecer as diferenças entre a manteiga convencional e a fabricada com leite de animais alimentados à base de pastoreio, entre a manteiga doce e a fermentada (com culturas vivas).

É capaz de explicar como é que a erva tenra da Primavera produz manteiga mais amarela (deve-se ao betacaroteno presente nas plantas) e, enquanto faz uma prova de sabores, consegue distinguir o diacetilo (aquele sabor amanteigado essencial) e as lactonas (que dão doçura, segundo ela). Em suma, Khosrova é uma conhecedora de manteiga num país que está a voltar à manteiga.

“Há tanto tempo que ela é vilipendiada, com as guerras da margarina e das dietas,” diz Khosrova. Mesmo nos anos 1980, quando “a gordura era completamente tabu”, acrescenta, “nunca deixei de comer manteiga.”

Mas, mais precisamente, como é que se faz um teste ao sabor da manteiga? Afinal, é de uma maneira muito semelhante a uma prova de vinhos, mas… mais espessa. Khosrova pega na colher, cheira-a e mete-a na boca, batendo a colher contra os dentes.

“Tento mantê-la na parte da frente da boca,” explica, enquanto saboreia. “Queremos que se dissolva o mais lentamente possível.” Ela faz um barulho ofegante e gutural. “Estou a tentar quase cheirá-la pela parte de trás da garganta”, explica.

Entre o salgado inicial e a gordura saborosa que cobre a língua e faz tudo o resto parecer um sonho distante, o palato de Khosrova captura o terroir da manteiga. Tem “uma qualidade quase parecida a um vegetal,” diz. “É muito efémera. Aparece e desaparece num instante.”

Esta amadora tenta capturar esta subtileza e acaba com a boca cheia de manteiga. O que até nem é nada mau.

Deitar manteiga no café

O livro de Khosrova, que foi publicado em Novembro, não podia chegar em melhor altura. Nos últimos anos, inúmeras manchetes declararam o “regresso” da manteiga, juntamente com estudos que sugeriam que podíamos ter exagerado os seus perigos para a saúde. As pessoas andam a deitar manteiga no café e a procura por “comida real” está generalizada o suficiente para levar a McDonald’s a substituir a margarina do Egg McMuffin por manteiga, em 2015.

A história da manteiga é uma história tipicamente americana, porque a curva da sua vilificação e subsequente redenção funciona como uma parábola sobre a maneira como nos enganamos repetidamente em relação à comida. Ou demonizamos ou idealizamos ingredientes individuais – não só a manteiga, mas também o açúcar, a cafeína, o vinho tinto e os supostos alimentos milagrosos que aparecem no programa do Dr. Oz – e, deste modo, não temos uma visão global da alimentação.

Mesmo actualmente, no suposto momento de glória da manteiga, há muitos cientistas da nutrição preocupados com a possibilidade de o pêndulo estar a pender demais para o lado dela. As tendências alimentares na América lembram a terceira lei de Newton, conta David L- Katz, director fundador do Yale-Griffin Prevention Research Center: “Para cada reacção idiota, há outra reacção igualmente idiota.”

Mas, antes de chegarmos a este ponto, é útil voltar ao início. Khosrova escreve que a manteiga terá tido origem na era do Neolítico. Embora as circunstâncias exactas da sua descoberta sejam desconhecidas, ela imagina um pastor a armazenar leite dentro de uma pele de animal. Ao longo de muitas horas, o leite é amadurecido por bactérias, arrefecido e agitado por uma viagem com solavancos, fazendo com que se formem flocos de manteiga dourados que fazem as delícias do pastor.

Com o tempo, explica Khosrova, a manteiga tornou-se não apenas amada, mas venerada. Na Suméria antiga, as pessoas levavam oferendas de manteiga ao templo para celebrar a união de uma deusa da fertilidade com um pastor leiteiro mitológico. Os arianos védicos enchiam os seus textos sagrados de referências à manteiga (“ondas de manteiga fluem como gazelas diante do caçador”, reza um hino), enquanto os monges budistas tibetanos fabricaram esculturas de manteiga durante séculos, e continuam a fazê-lo. Os antigos druidas homenageavam uma deusa pagã fabricando manteiga – “o impulso fálico da batedeira da manteiga” simbolizava “a bênção da fertilidade”, explica Khosrova. Ela conta que a manteiga era considerada sagrada por muitos povos, em parte porque não compreendiam como é que ela se formava. Se aspectos como a temperatura ou o teor de gordura não estivessem correctos, a manteiga não emergia. Portanto, o seu aparecimento era caprichoso e especial – uma prova da bondade do universo.

“Também era muito valiosa,” acrescenta Khosrova. Ela é alta e esguia; simpática mas com algumas reservas. Quando fala sobre lacticínios, é escrupulosa e por vezes consulta um manual que discute assuntos como a oxidação e a rancidez. “O sabor era delicioso, era usada como remédio, era usada para impermeabilizar coisas.” Além disso, “era muito rica. Por exemplo, se uma pessoa não consumia muita gordura animal, ela era suficiente para sobreviver.”

No século XVI, o fabrico da manteiga estava estabelecido como um domínio feminino, mas com a Revolução Industrial passou a ser uma tarefa masculina e industrializada, marcada por invenções como o separador centrífugo de natas e o aumento do número de leitarias comerciais com grandes equipamentos, que exigiriam homens musculados. Em 1887, o relatório anual da Associação de Leiteiros do Nebraska incluía uma despedida floreada à “doce leiteira” com o seu “braço farto e arredondado” e “voz doce”. Pouco tempo depois, começou o declínio da manteiga.

Manteiga vs. margarina

A história dos reversos da manteiga durante o século passado é complexa e confusa. Inclui uma guerra agressiva entre a manteiga e a margarina, mudanças no conhecimento científico sobre questões como a gordura saturada e a gordura trans e acusações relacionadas com uma epidemia de obesidade que causou o pânico entre decisores políticos, grupos de activistas e os americanos típicos.

Em tempos, os americanos comiam manteiga sem problemas. No início do século XX, consumíamos mais de oito quilos de manteiga por pessoa todos os anos, segundo dados do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos. A margarina, que foi inventada em 1869 e que era mais barata do que a manteiga, foi desde cedo atacada pela indústria dos lacticínios e sujeita a todo o tipo de regulamentações. Mas a sorte da margarina melhorou com o tempo, ajudada por uma oferta escassa de manteiga durante a Segunda Guerra Mundial e pelas preocupações com a quantidade de gordura saturada existente na manteiga, e superou a manteiga em popularidade durante a década de 1950.

Mais recentemente, tornou-se conhecido o impacto na saúde das gorduras trans artificiais presentes em alguns tipos de margarina, ao mesmo tempo que aumentava o nosso interesse em produtos mais “naturais”. Assim como o açúcar ocupou a posição da manteiga como o “alimento mais odiado”, em muitos círculos a manteiga passou a ser venerada, como se fosse um amor perdido que voltou da guerra. O consumo de manteiga superou o da margarina em 2005 e em 2014 o americano médio consumia 2,5 quilos de manteiga por ano – o valor máximo em 40 anos, mas ainda bem longe dos valores de antigamente.

No seu livro, Khosrova escreve sobre os benefícios de certos micronutrientes presentes na manteiga, especialmente na que é feita com leite de animais se alimentam em regime de pastoreio. Nos últimos anos, alguns estudos lançaram o debate sobre os efeitos que as gorduras saturadas têm no corpo. Mas muitos peritos em nutrição afirmam que a manteiga é, na melhor das hipóteses, uma força neutra na nossa dieta e recomendam que haja moderação; se exagerámos ao demonizá-la, também não devemos idolatrá-la. “O tipo de gordura que consumimos é muito importante e uma dieta saudável ideal será baixa em manteiga,” explica o médico de Harvard e nutricionista Walter Willett, via e-mail. “A razão principal para esta confusão é saber com que é que estamos a comparar a manteiga.”

Willett acrescenta que a manteiga é claramente menos saudável do que outros tipos de óleo, como o azeite, o óleo de soja e o óleo de colza. Mas, por outro lado, substituir a manteiga por hidratos de carbono não é melhor para o risco de doença cardiovascular. Ou seja, se quiser cortar na manteiga, substitua-a por azeite e não por bolachas baixas em gordura.

Katz, do Yale-Griffin Prevention Research Center, afirma que a narrativa do regresso da manteiga reflecte a nossa incapacidade de olharmos para as nossas dietas como um todo.

“Parece que andamos há décadas num ciclo em que procuramos bodes-expiatórios uns atrás dos outros. Neste momento, há uma indústria artesanal que insinua que o único mal da nossa dieta é o açúcar… Isso não absolve a pizza de pepperoni,” aponta Katz. “Este foco num bode-expiatório incentiva a indústria alimentar a continuar a fazer o que faz há décadas, que é continuar a inventar novos tipos de comida de plástico.”

Volta ao mundo pela manteiga

Khosrova é adepta da moderação no que diz respeito à manteiga, no mínimo porque o seu condimento favorito está cheio de calorias e é tão saboroso que um pedaço dá para muita coisa. Mas, nos dias das provas de sabor, a moderação fica necessariamente em suspenso.

Há muito para aprender sobre a manteiga, nomeadamente a forma como as vacas transformam a matéria vegetal em leite gordo, a razão por que algumas raças geram manteiga mais saborosa e qual é a combinação exacta de elementos que faz a Land O’Lakes saber “à minha infância”, como diz Khosrova. Para escrever o livro, Khosrova viajou até ao Butão, à Irlanda, ao Wisconsin e ao Iowa; conversou com um perito em ciências veterinárias e com um perito na fisiologia da lactação. Khosrova conta que as vacas Holstein, que produzem uma grande abundância de leite, são populares no mundo dos lacticínios, mas quando fabrica a sua própria manteiga prefere usar natas de vacas Jersey, que compra numa loja a 20 minutos de sua casa, em Hudson Valley, Nova Iorque. (No entanto, a melhor de todas, na sua opinião, é a “fabulosa nata” das vacas de Guernsey, que é “extremamente difícil de encontrar.”)

Ao contrário de Khosrova, esta amadora, que não está habituada a comer tanta manteiga de uma só vez, sente-se um pouco enjoada ao fim de provar quatro manteigas e até um pouco alegre. (Mais uma vez, isto é parecido a uma prova de vinhos.) Mas continua até ao fim, até chegar a manteiga de ovelha cara – que tem um sabor igual à faixa de gordura que se retira das costeletas de borrego – e a manteiga de cabra da Delamere, que é doce, com um sabor a caça e, de alguma maneira – é difícil descrever – é tenra. Quase causa lágrimas.

“Tem graça,” diz Khosrova. “O Michael Pollan escreveu sobre uma manteiga que provou em Espanha e disse que era absolutamente 'pungente'. Foi essa a palavra que ele usou.”

Outro amador presente na prova de sabores pergunta qual seria o melhor acompanhamento para a manteiga de cabra, mas a resposta já é óbvia. Evidentemente que é uma colher.

PÚBLICO/The Washington Post