Miguel manso

Os patrões podem obrigar as mulheres a trabalhar de saltos ou a usar maquilhagem?

Os deputados britânicos exigiram que o Governo aperte a fiscalização. E em Portugal, o "dress code" pode ser discriminatório?

Tudo começou em 2015, quando a londrina Nicola Thorp foi mandada para casa por se ter recusado a usar sapatos de salto alto no seu trabalho como recepcionista. A jovem lançou uma petição com o objectivo de alterar estas regras. A petição reuniu mais de 150 mil assinaturas – o suficiente para ser analisada pelo Parlamento britânico, que a debateu na segunda-feira. Por cá ainda não chegaram pedidos semelhantes à Assembleia da República.

Em Janeiro, a Comissão de Petições e a Comissão de Mulheres e Igualdade do Parlamento britânico publicaram um relatório onde concluíam que o Equality Act de 2010, que proíbe a discriminação no local de trabalho, ainda não é plenamente eficaz na protecção dos trabalhadores, como se verificou no caso dos saltos altos e dos dress codes de trabalho.

“O que descobrimos deixou-nos chocadas”, afirmou no Parlamento, esta segunda-feira, a deputada Helen Jones, do Partido Trabalhista, que lidera a comissão que analisou a petição. De acordo com o New York Times, além das queixas de mulheres obrigadas a usar saltos altos, a comissão recolheu depoimentos de mulheres obrigadas a usar maquilhagem, pintar as unhas, pintar o cabelo de loiro ou até mesmo o caso de uma mulher a quem foi pedido que desabotoasse um pouco mais a sua camisa para aumentar as vendas da loja.

A deputada trabalhista lamentou que as mulheres britânicas tivessem que lidar com duplos padrões “que pareciam saídos de 1850 e não do século XXI”, cita a BBC, e insistiu que a legislação fosse revista pelo Governo e, se necessário, que fosse pedido ao Parlamento que formulasse novas propostas.

O Governo britânico, entretanto, já deu resposta à petição, sublinhando que, apesar dos empregadores poderem definir dress codes para os seus trabalhadores, a lei é clara ao proibir “quaisquer diferenças entre as regras para homens e mulheres”. O Governo garante que continua a “trabalhar afincadamente para garantir que as mulheres não são discriminadas no trabalho por atitudes e práticas ultrapassadas”.

Alguém obriga as portuguesas a andar de saltos altos?

Em Portugal, onde não existem petições semelhantes no Parlamento, a lei também protege os trabalhadores de serem discriminados, incluindo nas regras que definem como vestir para a função que desempenham.

De acordo com o último Relatório de Actividades de Inspecção da Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT), relativo a 2015 , houve 267 advertências e 18 infracções autuadas por incumprimento de regras de igualdade e não discriminação, das quais apenas uma advertência (e nenhuma multa) resultou de questões relacionadas com igualdade de condições de trabalho. Nesse ano, as questões de género motivaram apenas 10% das 256 acções inspectivas pelos serviços da ACT no âmbito da igualdade e não discriminação no trabalho.

“Em Portugal, esse tipo de situações não acontecerá, pelo menos de forma tão aberta”, avalia Sandra Cunha, deputada do Bloco de Esquerda, ouvida pelo Life&Style. “A sociedade portuguesa já não tolera esse tipo de normas”, acredita a socióloga que acrescenta que essas normas “beberam de um perfume de conservadorismo de um tempo em que as mulheres vestiam saias e os homens vestiam calças”.

Por seu lado, Isabel Moreira, deputada do PS, também atribui as diferenças nas regras de indumentária aos papéis tradicionais – "e machistas", acrescenta – atribuídos a homens e mulheres. “Uma entidade empregadora não tem qualquer direito de impor o padrão da mulher discreta, bem comportada, ou muito menos interferir nas suas escolhas fora do contexto de trabalho”, defende.

A deputada dá o exemplo de um caso em que “uma das causas para o despedimento de uma mulher foi publicar nas redes sociais fotografias na praia ou a praticar desporto, a expor o seu corpo”. A pessoa em causa, no entanto, “não quis fazer queixa” – o que, para a deputada, “é sintomático” da auto-censura que, considera, muitas mulheres impõem a si mesmas, acrescenta ao Life&Style.

“Não há uma censura moral por parte da sociedade, até há uma certa adesão a este tipo de discriminação. ‘Ela pôs-se a jeito’, como dizem alguns. Mas o facto é que as empresas não têm direito de determinar a sobriedade com que as mulheres se devem vestir”, defende.

Sandra Cunha reconhece que o conservadorismo ainda existe em Portugal, mas afirma que esse discurso “já não é aceitável, não é politicamente correcto”. “Não me parece que exista muito de forma aberta, já que o direito das mulheres e o direito à liberdade se sobrepõem, e bem”.

A socióloga sublinha, no entanto, a necessidade de “mudar mentalidades” para que a igualdade seja sentida na prática. “É importante, para além da garantia de direitos que conseguimos imprimir na legislação, transmitir a igualdade da lei para a vida”, conclui.