Livro
Da gordura é formosura ao corpo medido: a história dos gordos e dos magros
Houve tempos em que ser gordo era sinónimo de bem-estar e os magros eram os pobres. Hoje é ao contrário.
Nos dias de hoje tudo é contado e medido e o corpo não escapa à tendência. O ideal é o corpo magro, numa fantasia de omnipotência que diz que podemos ter o corpo que queremos. Se não temos…
Houve tempos em que ser gordo era sinónimo de bem-estar social e algo benigno. Magros eram os pobres. Na actualidade inverteram-se os valores e a realidade – os alimentos ultraprocessados e mais baratos ao alcance dos menos abonados criaram obesos, com acrescento de culpa.
No livro Gordos, Magros e Obesos, a historiadora brasileira Denise Bernuzzi de Sant’Anna escreve sobre a visão do corpo para fazer o retrato da sociedade brasileira num período de cerca de 100 anos – dos começos do século XX ao presente dos anos 2000. Partindo de novo do corpo chega à história social dos valores estéticos, da relação homem-mulher, da saúde, da higiene, dos consumos, dos hábitos alimentares; dá-nos a história urbana, da indústria, do trabalho. Já fizera algo análogo em História da Beleza no Brasil.
“(…) A história dos gordos e magros não revela somente problemas relacionados à aparência corporal e à saúde (…). É o corpo a figura a ser mantida no centro das atenções (…), é emblema e prova (…). [Deu-se] um vertiginoso aumento das exigências feitas ao corpo no decorrer do último século, não apenas em nome da saúde e beleza, mas ainda em favor de ideais de sucesso, felicidade, realização pessoal e poder.” (p. 176)
O paradigma do gordo apreciado inverteu-se dos anos 20 do século passado para o presente e o modelo de referência passou então a ser o magro. De um a outro mudaram os alimentos à mesa, impulsionados pela força da publicidade, que valorizou o (quase) pronto a comer com aditivos, “com escassez de fibras e concentrações extremamente altas de açúcar, gordura e sal” (p. 111). E aqui importa destacar um facto que a autora denuncia: “Em países como o Brasil e a Índia, por exemplo, esses alimentos ainda podem ser piores do que os seus congêneres na Europa. (…) [Trata-se de] ultraprocessados especialmente destinados a consumidores de baixa renda de países emergentes.” (Idem ibidem)
A tendência para o consumo desse tipo de alimentos (e a autora pergunta-se o que contêm verdadeiramente, de que são feitos) não é indiferente à entrada com maior expressão das mulheres no mercado de trabalho. Houve consequentes mudanças na gestão alimentar das famílias, nos tempos e lugares das refeições e o tema da obesidade foi trazido para o centro do debate em termos de saúde e estéticos. E foi dado o alerta com o seu negativo: as modelos (e outras mulheres) supermagras (anorécticas) a ponto de morrerem. A pressão da beleza e do corpo ideal exerce-se mais sobre as mulheres, embora se alargue também aos homens.
A revolta dos gordos
Dos anos 50 em diante, no Brasil como no Ocidente, ao mesmo tempo que os alimentos ultraprocessados estão na moda e causam distúrbios alimentares e problemas de saúde, começa a surgir uma consciência do perigo que esse tipo de comida representa. É um tempo algo esquizofrénico: a publicidade cria apetência por esses produtos e simultaneamente pressiona para a magreza. É o tempo das idas ao ginásio (“academia” no Brasil), para mudar, modelar o corpo; da responsabilização dos gordos pelos gastos públicos em saúde e até por exaurirem o planeta; da entronização da cozinha e dos chefs (mais homens do que mulheres), dos impostos sobre alimentos com excesso de açúcar, dos reality shows com os que têm excesso de peso, do coaching alimentar, da desigualdade enorme entre a fome numa parte do planeta e os excessos na outra. Do lado dos excessos ocorre uma massificação e, no dizer da autora, um “desenraizamento alimentar”.
E dá-se o fenómeno algo novo da revolta dos gordos com eclosão dos fat studies na tentativa de descriminalizar e “despatologizar” a obesidade. O debate espalha-se pela internet, aparece o plus size e a língua acolhe termos de tolerância e apreço pelos gordos como “curvy”, “brawn”, “in-betweenie”, “life size”. Cem anos volvidos… E talvez não por acaso as novidades linguísticas surgem em inglês, a língua das multinacionais da má comida. Nada se perde, tudo se transforma.
A historiadora vai reunindo factos e elucidando tendências, deixando alertas, construindo um quadro alargado e problematizante com base em fontes próximas como sejam jornais, revistas, textos literários e científicos que vão espelhando o sentir social. E falando do corpo, seu tema por excelência.
Denise Bernuzzi de Sant’Anna é professora de Pós-Graduação de História e Psicologia Clínica na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Doutorada na Universidade Paris VII, tem diversos livros e artigos publicados sobre o corpo e a cultura contemporânea.
Livro: Gordos, Magros e Obesos – Uma História do Peso no Brasil, Denise Bernuzzi de Sant’Anna, Estação Liberdade, São Paulo, 2016