Salomé Areias, coordenadora do projecto Fashion Revolution em Portugal
Salomé Areias, coordenadora do projecto Fashion Revolution em Portugal DR

Entrevista

Revolucionar na moda é respeitar o planeta e a humanidade

Projecto Fashion Revolution promove, entre 18 e 24 de Abril, em Lisboa, workshops, um mercado de troca de roupa e uma ‘unconference’ para pensar em alternativas ao actual consumo de moda.

Como é que se mudam as mentalidades das grandes empresas da indústria da moda? Cria-se um movimento. E dos consumidores? Educam-se. “Só a partir da educação é que conseguimos perpetuar um movimento”, acredita Salomé Areias, professora de design de moda e coordenadora do projecto Fashion Revolution em Portugal.

Fashion Revolution começou em 2014, um ano depois do colapso da fábrica de Rana Plaza, no Bangladesh, onde se fabricavam peças para algumas das marcas de moda rápida europeias mais conhecidas e onde morreram mais de mil pessoas. Carry Sommers criou o movimento online e, a partir daí chegou a vários países. O objectivo é sensibilizar todos os órgãos do sistema de moda (público, designers, distribuidores, artesãos, donos de fábricas e legisladores) a contribuir para uma indústria mais sustentável, que proteja as economias locais, os trabalhadores e os ecossistemas.

Salomé Areias louvou a causa por e-mail – “estávamos a precisar de uma organização com a militância que eles têm, o tipo de posicionamento a nível de protesto, de activismo. E não só mais uma simples associação de ética e moda” – e trouxe o projecto para Portugal.

A docente e promotora do Fashion Revolution faz o balanço de três anos e reconhece que o primeiro apelo vem das pessoas que têm demonstrado um interesse crescente em relação àquilo que compram. “Há um crescimento tímido, o que é um bom sinal. Não sendo um boom, algo que é repentino ou exponencial, não é uma moda. E como é algo que surge lentamente, há-de morrer lentamente. E é uma resposta, uma necessidade do nosso mundo”, frisa.

Pela terceira vez em Portugal, mais concretamente em Lisboa, o Fashion Revolution, que expandiu as suas iniciativas de um dia para uma semana em 68 países em simultâneo, quer pôr o “consumidor a mexer” e arranjar alternativas à moda rápida. No programa há workshops gratuitos (de iniciação à costura, bordado sobre ilustração, customização de chapéus ou pintura em tecido, na Travessa do Carvalho), a primeira exibição pública do documentário True Cost (no Museu do Design e da Moda, em Lisboa, no dia 22 de Abril), uma ‘Unconference’ com o tema “Como podemos erguer um sistema de moda sustentável?”, aberta a todos os interessados, mas sujeita a inscrição; sem moderadores, mas com “facilitadores”; e um Swap Market (Arquivo 237, a 24 de Abril), um mercado de troca directa de roupa usada em boas condições.

Numa próxima edição, o projecto quer estender-se a todo o país – os eventos concentram-se em Lisboa porque é onde a equipa da organização está sediada mas já receberam vários contactos para replicar estes eventos noutras cidades. Por enquanto, chegam através da Internet. "A revolução é de toda a gente que a quer fazer."

Porque é tão importante fazer uma revolução na moda?
Esta revolução já existe nos consumidores. Há muita esta ideia de que a mudança tem de surgir nos consumidores, de que os consumidores compram demasiado, fazem filas na abertura de novas lojas da Primark, na H&M quando tem colecções especiais, como a da Balmain. Mas eu acho que esta revolução já existe nos consumidores ou pelo menos existe esse pensamento revolucionário a nível de comportamento de consumo. As pessoas querem mudar, querem ter um comportamento diferente. Preocupam-se de facto com a exploração laboral e a sustentabilidade a nível de contaminação dos rios, dos solos. Mas não têm alternativas. Isso é o maior problema. A indústria, as marcas e mesmo a nível de legislação há pouca resposta para o consumidor conseguir fazer alguma coisa. Cá em Portugal temos poucas marcas sustentáveis e quem tem esse comportamento consciente tem de comprar fora, online ou fazer as suas próprias coisas.

Como é possível comprar de forma mais ética e sustentável sem gastar muito dinheiro?
É um desafio. É um desafio que surge também da falta de alternativa. Há marcas que tentam atender a uma produção sustentável, ética, e utilizam têxteis ecológicos mas acabam por ser muito mais caras. Essa é uma das opções. Dentro dessa opção, é possível fazer uma optimização de compra e tentar contrariar esta cultura do "consome aqui e agora e deita fora". Podemos comprar agora, mais caro, e a peça pode durar cinco ou dez anos. Mas este tipo de comportamento não é para todas as classes sociais, nem todos têm 30 euros na mão para um básico.

Há uma segunda opção que é fazer. É possível aprender, e a oportunidade de aprender é agora porque as técnicas artesanais estão a morrer e devemos aproveitar agora com os ensinamentos dos nossos tios, dos nossos avós. Tambem há a opção de trocar peças de roupa.É uma alternativa que vai ao encontro da necessidade das pessoas estarem sempre a mudar. Marcar encontros em casa de amigos, ir a feiras em segunda mão, por exemplo.

A Fashion Revolution já teve impacto nas marcas de moda rápida?
Absolutamente. Já há respostas por parte das marcas à pergunta que começou a difundir este movimento – Who Made My Clothes? [Quem fez a minha roupa?] 

Ao início as marcas não respondiam. Hoje em dia há pressões tais que marcas de fast fashion como a Mango, a Primark ou o grupo Inditex já respondem. Pedem para as pessoas enviarem fotografias da sua peça e às vezes dizem que foi feita na Índia, no Banglasdesh. Outras vezes dizem especificamente em que fábrica foram feitas ou até por que equipa. Sentem que é uma necessidade. As marcas têm vindo a perceber que  o consumidor quando vai às suas lojas vai à etiqueta e, se calhar, já não compra a peça se vir que é da China, procura outra que tenha sido fabricada, pelo menos, dentro da União Europeia, onde sabem como funcionam as leis laborais.

E nas grandes casas de moda?
Também. A Stella McCartney, por exemplo, envolveu-se mesmo com a Fashion Revolution e mostra essa preocupação e ligação à organização nos seus desfiles. Mas a preocupação com a moda sustentável, em geral, está a atravessar todos os top designers. Tem sido um incendiar de casas de moda do mundo inteiro. Isto não tem só a ver com a questão do trabalho laboral, não tem só a ver com a moda ecológica. Há os casos de Raf Simons ou o Jean Paul Gaultier que se recusam a compactuar com um calendário de moda que estrangula a inovação e a criatividade. Criamos mais e mais blusas, camisolas, calças iguais às que sempre criámos. Isso traduz-se numa impressão constante de produtos iguais a qualquer outro neste planeta que, no fundo, vão poluir mais sem levar o design de moda um passo à frente. A moda é tida como uma área tão vanguardista e edgy, que questiona o status quo, mas na realidade é o sector mais quadrado. É insustentável. Temos mesmo de criar um sistema novo, que permita acalmar, desacelerar. Arranjar outros métodos de criatividade. Os top designers têm pensado nisto. Têm dito: “Esperem ai, eu quero fazer o meu trabalho mas quero ter tempo para o fazer”.

O modelo “veja agora, compre agora”, defendido pela Burberry ou por Tom Ford, é uma solução?
Pode ser. Podemos chegar, num futuro próximo, a um ponto em que todos os designers disponibilizam as colecções apresentadas em passerelle na hora e isso pode, eventualmente, suprimir o fast fashion. O modelo de negócio da moda rápida vive disto: têm alguns buyers nos desfiles dos grandes designers, percebem qual a tendência ou o estilo que foi mais usado por um x número de designers e criam peças. Se as casas de moda disponibilizarem as suas colecções imediatamente após os desfiles, o fast fashion deixa de ter aquele tempo para fazer aquelas peças com tecidos mais baratos, com mais cortes, racionando melhor o tecido. Mesmo que consigam criar uma peça semelhante, lançarão sempre mais tarde e isso vai estragar-lhes os planos. Pode ser positivo.

Os consumidores portugueses são diferentes dos outros?
Sim, porque estamos na cauda dos novos comportamentos e pensamentos. Somos muito renitentes a agir, falamos mal primeiro e só quando vemos que já é um comportamento comum em Londres, Paris ou no norte da Europa é que começamos a pensar seriamente no assunto.

Mas também temos muitas pessoas a entrar e a sair do país e isso facilita a entrada de ideias. E nós temos uma cultura de inovação, de arriscar, que às vezes faz os consumidores atirarem-se de cabeça e quererem mudar de atitude. No caso do Fashion Revolution eu verifico que temos sido um bocadinho mais teimosos em aceitar certas coisas, há um estigma difícil de aceitar à volta da moda sustentável, ainda é associado à roupa feia, à roupa hippie. Não pensamos na hipótese de ver isto do ponto de vista da inovação.

Qual o maior objectivo desta 3.ª edição?
A nossa equipa Fashion Revolution Portugal centra-se muito no valor do ensino. Acreditamos que só a partir daí é que se começará a desencadear um novo comportamento e por isso temos vários projectos em curso, nomeadamente um documentário. Todos os nossos eventos estão centrados nessa ideia de dar poder ao consumidor e de ele próprio arranjar alternativas à fast fashion, daí os workshops e a própria Unconference. De tudo, é o que envolverá mais pessoas. Queremos que dialoguem, partilhem ideias e desenhem planos de acção. A indústria de moda envolve muita coisa, é muito complexa. E parece que ninguém arregaça as mangas. O maior objectivo é envolver pessoas de todo o sistema na solução.