Na ponta da língua

De vez em quando sabe bem ser um respeitável pilha-galinhas e comer uma delas devidamente estufadinha por uma grande cozinheira
No Guardian online, do dia 20 deste mês, Tony Naylor, sob o divertido título “High steaks: the new craze for old cow”, entrevistou o admirável chefe Nuno Mendes sobre a carne barrosã que ele serve no restaurante londrino dele, Taberna do Mercado. “É incrível”, diz ele, “as vacas comem só pasto até chegarem aos 15, 16 anos. Isto permite-lhes ter uma vida longa e feliz”. E depois acrescenta, crucialmente: “Isto tem um impacto enorme sobre o entrelaçado de gordura na carne (“marbling”) e sobre o sabor mais pronunciado”.
Nós tratamos muito mal os animais que comemos. Mas não há dúvida que os animais que têm vidas felizes e compridas antes de serem abatidos têm uma carne muito mais saborosa.
Embora também me preocupe (e envergonhe) o bem-estar dos animais que comemos, aquilo que me leva a comer exclusivamente carne certificada “bio” tem a ver com a minha gula e mais nada.
É verdade que só como carne uma ou duas vezes por mês mas quando se prova a carne de uma vaca ou de uma galinha que tenha sido criada conforme dita a natureza dela já não se quer outra coisa.
Claro que a carne é muito mais cara mas também não fomos feitos para comer carne nas quantidades absurdas que hoje se comem. Depois de ler os livros de Michael Pollan (e de ver os quatro interessantíssimos programas da série Cooked na Netflix) percebe-se que comer bem é comer inteligentemente, com consideração por aquilo que se come e como é (ou não) cozinhado.
Todos os meses, quando nos visita o nosso grande amigo (e garfo) Manuel Serrão perdemos a cabeça e pedimos à Dona Lurdes Dias, exímia cozinheira da Adega das Azenhas do Mar, que nos faça uma galinha à Adega.
É preciso encomendar com pelo menos uma semana de antecedência, porque as galinhas “bio” também têm de ser combinadas como deve ser.
Não faz grande sentido dizer que a galinha que passa a vida em liberdade, fazendo tudo o que as galinhas fazem, é muito mais corpulenta, mais magra de carnes e grossa de pele, do que um frango industrial. São animais diferentes. É como comparar um pregado de viveiro com um pregado do mar.
É mais difícil de cozinhar e por isso é essencial a colaboração de quem saiba cozinhar muito bem.
A galinha da Dona Lurdes é estufada mas pouco se ganha, também, em dizer isto. O que interessa é a delícia que fica. O molho – e até a maneira de cortar – tem muitos segredos. Mas a ambição e o resultado são os mesmos: ficar a saber, verdadeiramente, a galinha.
O sabor da galinha é sublime, melhor do que o do galo ou do capão. Tudo depende do que se estiver a comer. Caso se esteja a comer um galo, então o galo é nitidamente melhor do que a galinha.
Também é importante sabermos as raças tradicionais portuguesas: a Pedrês, a Preta Lusitânia, a Amarela e a Branca. Assim como ainda há lugares em Portugal onde se mata um porco duas vezes por ano, também há quem siga o hábito antigo de matar uma galinha quando é dia de festa. O animal que se mata foi criado por quem o vai comer.
Foi num monte do concelho de Odemira que tive a sorte de comer a minha primeira galinha caseira. Os anfitriões passaram o jantar a contar os hábitos da galinha que tinha o nome de Joana e que gostava de seguir a dona da casa. Ela chorava enquanto o marido contava essa história.
É uma questão de respeito e de sacrifício. Nós aqui na cidade e no tempo presente podemos não ter paciência para criar galinhas (embora haja cada vez mais almas esclarecidas a fazê-lo) mas podemos conhecer, através das quintas que seguem as regras “bio”, galos e galinhas enquanto ainda estão vivas e verificar que são seres bem dispostos e saudáveis que gozam de liberdade de acção.
Se, em vez de serem muito mais saborosas do que as industriais, estas galinhas fossem pouco deliciosas, então duvido muito que me desse ao trabalho de investigá-las...
Mas são. Muito de vez em quando, em dias de festa, não há nada como uma galinha estufadinha.