Na ponta da língua

A Casa Nanda é o santuário milagreiro onde a melhor comida portuguesa desce dos céus para as nossas mesas
Quando lá vamos comer sentimos que estamos a voltar a uma casa onde nascemos e fomos meninos. Todos aqueles sabores são tão antigos e tão bons que parecem saudades de coisas saboreadas há muito tempo e nunca mais esquecidas.
Se me disssessem que a Casa Nanda não existe e que foi um sonho que eu tive, eu acreditaria. George Orwell descreveu o pub perfeito, o The Moon Under Water, até revelar, no fim da crónica, que só tinha uma desvantagem: só existia na imaginação dele.
Quando se entra na Casa Nanda tem-se a sensação de ter viajado no tempo: as mesas estão cheias de pessoas satisfeitas e de travessas apetitosas. Não há pressas, pretensões ou nervosismos. Só a calma que vem de se saber que se está no sítio certo.
Na sala, a Dona Nanda, o Senhor Canelas e o jovem Senhor Justino criam um ambiente de autoridade benevolente: só se serve o melhor e mais fresco que há, cozinhado da melhor e mais deliciosa maneira que há.
Poderiam cobrar preços muito mais elevados mas até nisso são tradicionalistas: digam lá o que disserem, comer bem e pagar pouco continua a ser um dos grandes prazeres da mesa portuguesa. Tudo é mimoso até ao pormenor: o jarrinho de um quarto de litro de excelente vinho da casa é de porcelana branca. Não é por ser barato que deixa de ser servido com fineza.
O arroz branco, simples, é servido com uma farto rama de salsa acabada de apanhar. O arroz está perfeitamente cozido. Não tem truques nem temperos. Não está armado em estrela: é apenas o correcto acompanhamento de, por exemplo, as tripas à moda do Porto.
Como nunca lá comi ao fim-de-semana nunca tinha provado as tripas à moda do Porto. É um prato que não consigo recusar, caso esteja na carta de um restaurante portuense. Já comi, por conseguinte, tripas muitíssimo bem feitas ao longo de cinco décadas de idolatria.
Mas quando provei as tripas da Casa Nanda tive a sensação de estar a comer tripas à moda do Porto pela primeira vez na vida. Eram tão leves, fofinhas e saborosas que parecem ter sido cozinhadas no vapor de nuvens quentes.
As cozinheiras — a Dona Maria da Soledad, casada com o Senhor Canelas e a Dona Paula — têm mãos e olhos de milagre. Toda a gente fala dos bons ingredientes e é verdade que na Casa Nanda só entra o que é muito bom só por si: até a broa de Avintes é a melhor que já comi. A galinha que serve para fazer canja foi uma galinha andarilha com um bico caprichoso e uma vida feliz. É magra pelo muito que passeou, a fazer as coisas que as galinhas gostam de fazer quando as deixam estar. A pouca gordura que tem é quanto basta para dar sabor à canja.
A canja é clara e reconfortante. Respira-se. Vem apenas com uns fiapos de galinha e umas massinhas quase imaginárias. Até a Maria João, que nunca na vida foi capaz de contemplar uma canja que não tivesse sido feita pela mãe dela, olhou, cobiçou, pediu e despachou um prato de sopa inteiro.
A simplicidade não é o que dá mais trabalho: é o que requer bom gosto aliado a um grande talento. É esta combinação rara que têm as cozinheiras da Casa Nanda.
Note-se que a Dona Nanda e o Senhor Canelas não são os embaixadores da casa. Ambos intervêm activamente no receituário. A Dona Nanda é, ela própria, uma grande cozinheira, tal como o Senhor Canelas é um profundo conhecedor da gastronomia portuguesa.
É esta reunião extraordinária de talentos, competências e de rigores que faz da Casa Nanda uma casa excepcional. Não se pode dizer que seja exemplar porque é impossível seguir o exemplo dela. É única.
Comi uns filetes de bacalhau sensacionais. São como um policial: pasmamos deliciados e perguntamos “mas como foi possível chegar a tal coisa?”
Foi Deus, sim. Mas com uma grande ajuda da Casa Nanda.