Na ponta da língua

Felizes as vieiras e os ouriços do mar de Portugal que morrem de velhice — mas pobres de nós, portugueses
Neste sábado fizemos uma experiência com um amigo nosso que é marisqueiro de primeira água salgada. Colocámos duas dúzias de vieiras ovadas na chapa quente e deixámos um minuto e meio, só com uma pedra de sal em cada concha.
Ficaram estupendas. Nem o esguicho de limão foi estritamente necessário. Assim se prova, mais uma vez, o sagrado pricípio luso-nipónico da gastronomia: tudo o que sabe bem cru sabe bem minimamente cozinhado.
A memória de muitos sashimis de vieira não mentiu. No soberbo restaurante Batareo em Setúbal (tel.: 265 235 548, aberto só à hora de almoço) comemos, há uns anos, umas vieiras magníficas, pescadas na véspera. O método, simplicíssimo, era grelhá-las na concha, com uma gota de azeite e um grão de sal.
Claro que as vieiras são muito versáteis e aparecem em milhares de pratos, dos quais alguns serão deliciosos. Mas é bom não se perder o sabor puro da vieira, que é imbatível.
Fui à página do Facebook do Batareo e, na fotografia principal, lá estava uma travessa com vieiras grandes e vivas, inteiras e fechadas como deve ser. Num post de 30 de Janeiro estavam oito lindos ouriços do mar...
Os ouriços do mar em todo o mundo são cobiçados e comprados por bom dinheiro. Em Portugal, tal como as vieiras, morrem de velhas no fundo do mar.
Neste momento não sei de um único restaurante, sem ser japonês, onde se possa ir comer ouriços — crus e ovados, claro. Quando abriu o El Corte Inglés havia ouriços vivos à venda na peixaria mas depois nunca mais vi. Suponho que desistiram de vender o que os portugueses inexplicavelmente se recusam a comprar.
Estou a ver que tenho de ir ao Batareo esclarecer o assunto — olhem só o sacrifício: as coisas que eu faço pelos meus leitores!
Voltando às vieiras, há para aí muita vieira congelada — alguma já prontas para gratinar, em grotesca imitação das coquilles st-jacques com molho de natas — que é simplesmente horrenda. Já experimentei várias marcas e proveniências (o preço é atraente e a gula é grande) e nenhuma delas prestava para nada.
Não, as vieiras merecem ser tratadas como os nossos melhores mariscos: têm de estar vivas e serem grelhadas rapidamente.
Os galegos adoram as vieiras e nós não. Porquê? Faz algum sentido? São Tiago será para nós um santo menor só por ser tão importante para a nossa irmã galega? Alguém me saberá explicar esta incompreensível diferença entre dois povos tão parecidos?
Dito isto, as vezes em que comi vieiras na Galiza tinham sempre um molho ou um preparo qualquer. Eram gostosas mas escondiam o sabor das vieiras. Vieiras en su concha, por exemplo, levam um refogado de cebola, alho e salsa, mais um esguicho de vinho branco ou de Jerez seco.
Parece que se fartaram de comer vieiras e têm de arranjar cada vez mais maneiras de a cozinhar: com tomate, molho bechamel, noz moscada e sei lá quantas outras mistelas.
Os americanos e canadianos também usam apenas os adutores das vieiras (geralmente congeladas) como cubinhos de proteína, para serem cozinhados de todas as maneiras. A maneira “simples” de cozinhá-las é salteá-las rapidamente em manteiga, caramelizando-as.
Os irlandeses envolvem-nas em natas e manteigas. Os escoceses exportam-nas. Tenho a impressão que o mundo inteiro quer dar-lhes um sabor diferente daquele que tem naturalmente, aproveitando apenas a textura do bicho.
Para a próxima vez que encontrar vieiras vivas hei-de experimentar abri-las e comê-las como se fossem amêijoas ao vapor, sem acrescentar nada. Aposto que vão saber pela vida.
Quanto aos ouriços, parece que é possível comprá-los nos grandes mercados. Os melhores restaurantes japoneses só os compram quando estão ovados — o uni — para servir em sushi ou sem arroz, em sashimi.
Mas o resto do ouriço também é delicioso: tem um sabor de mar tão evocativo como o percebe ou uma ostra.
Não hei-de descansar enquanto não puder dar conta deles, juro.