Na ponta da língua

Uma questão eterna: deve pôr-se o leite antes do chá ou o chá antes do leite?
Por uma questão de snobismo mal informado, o hábito nas casas particulares e nos grandes salões de chá da Inglaterra é, hoje em dia, deitar primeiro o chá e depois o leite.
Segundo a etiqueta contemporânea está certo. Mas está errado do ponto de vista gastronómico. Quando se acrescenta leite frio a uma chávena cheia de chá quente, o leite fica cozido e o sabor é leitoso.
São dois processos químicos diferentes, conhecidos há séculos.
Encontram-se dezenas de explicações técnicas. Diz-se, por exemplo, que se põe primeiro o leite frio para proteger a porcelana do confronto com o chá quente. Depois há quem diga que só quem tem porcelana inferior é que tem esse medo, não se importando de deitar primeiro o chá. Ainda há quem contraponha que é ao contrário: quem tem porcelana realmente boa (e logo frágil) deita primeiro o leite; quem tem cerâmica da grossa, está-se nas tintas.
Parece que foram os franceses os primeiros a acrescentar leite ao chá. Mas desde os livros do Astérix que os britânicos pedem o chá como uma nuage de leite. Trata-se de um debate eminentemente anglo-saxónico. Não se destina a obter conclusão: serve apenas para manter distinções sociais. Os partidários do milk in first (MIF) são tão veementes como os do milk in last (MIL).
Nas salas de chá de Londres deitam logo o chá. É preciso impedi-los. Eles até agradecem. Melhor será pedir-lhes que deixem o bule em cima da mesa, sem servir o chá. Isto porque os chás precisam sempre de mais um minuto ou dois de infusão.
Muito gostaria aqui de apresentar os milhares de argumentos acerca do MIF e do MIL. O mais tosco para o MIL é o de George Orwell, no famoso ensaio que escreveu sobre como fazer chá: é para pormos a quantidade de leite que quisermos. Diz ele que é perigoso pôr o leite primeiro porque se tem de adivinhar se o chá vai ou não ser forte.
Parece-me que ele está a falar como viajante e convidado. De facto, se não soubermos se o chá vai estar devidamente infundido, é compreensível deixar o leite para depois. Fora do Reino Unido, da Alemanha e da França não sabem fazer chá. E nos melhores hotéis dos Estados Unidos da América ainda é pior do que numa pastelaria portuguesa de esquina...
Na minha opinião, o triunfo nefasto do MIL deve-se à preguiça e ao comércio. Antigamente, a an?triã que servia o chá (fazendo o papel de mother) tinha de perguntar “do you take milk?” a cada um dos convidados. Depois tinha de adivinhar se cada um gostava do chá mais ou menos diluído.
Perdia-se assim muito tempo e conversa. Agora serve-se chá a todas as chávenas e cada um que se sirva ou não do leite conforme quiser. É esta a grande vantagem para os estabelecimentos comerciais. Obtém-se um aumento de velocidade superior a 100%. Mas também se perdem as boas maneiras e o vagar que contribuem tanto para o prazer do chá.
Do ponto de vista gastronómico é fascinante. Faça a experiência em casa. De um mesmo bule sirva duas chávenas: um MIF e outro MIL.
Prove-os e decida qual prefere. Dependerá das variedades de chá, é claro. Mas verá, depois de quatro ou cinco experiências, que são sabores diferentes. Com o MIF o chá ?ca mais fresco e vegetal. Com o MIL ?ca mais adocicado e queijudo.
Se estiver a fazer chá só para si, com um saco de chá numa caneca, não poupe no cuidado. Os melhores sacos são de muito melhor qualidade do que os baratos e custam pouco mais.
Deite a água a ferver para cima do saco e deixe-a infundir pelo menos dois minutos, sem perturbações. O método de mergulhar e desmergulhar o saco dentro da caneca durante 30 segundos, até gostar da cor obtida, produz o resultado mais insatisfatório de todos.
No caso de canecas é muito mais prático o MIL, claro. Mas, se for exigente, use duas canecas: uma com o leite frio e outra onde terá feito a infusão. Passados os dois ou três minutos, deite o chá para a caneca que só tem o leite frio no fundo.
Uma coisa é certa: seja partidário do MIF ou do MIL, não pode é ser indiferente. Ter uma posição ?rme sobre o assunto — e saber defendê-la — é tão essencial como a própria cerimónia do chá.