Na ponta da língua

De vez em quando há um homem à beira da estrada com algumas coisas preciosas para partilhar
Na véspera de Natal estávamos em Odrinhas e lembrámo-nos que uma vez, há alguns Verões atrás, tínhamos comprado feijão verde a um homem debaixo da sombra de um pinheiro.
Fomos lá ver e lá estava ele, apesar de estar a chover muito. Estava vestido para a tempestade, com calças amarelas de pesca, vários casacos permeáveis que todos juntos eram impermeáveis e um belo guarda-chuva de senhora dos anos 60.
Tinha umas lindas réstias de alho à chuva. Perguntei-lhe se não fazia mal. “Esta chuva?”, disse ele com um sorriso paternal, “esta chuva não faz mal nenhum. Amanhã já estão enxutos.”
“Estarão?” perguntei, um bocadinho desconfiado. Aí ele não perdoou:
“Então o senhor não vê que os alhos mesmo dentro da terra estão mais do que habituados à chuva?”
Também estavam à chuva três molhos de grelos de nabos — os mais verdes que alguma vez vi. A chuva, claro, ficava-lhes bem. Brilhavam graças a ela.
“Estes grelos são bons”, explicou o homem, “são de primeira apanha”.
Gostei da maneira pouco generosa como ele escolheu o adjectivo para os grelos. Aqueles grelos eram, de facto, excelentes: excediam em gosto e aspecto todos os outros grelos deste ano.
Era a primeira vez que poderia ter ouvido dizer de uma coisa, com inteira verdade, que eram excelentes. Por outro lado, tive o prazer de ouvir dizer “de primeira apanha” no sentido literal e verdadeiro.
Num mundo com tantos livros e filmes “excelentes” e de “primeira apanha” soube-me bem levar aquele imenso molho de grelos (1 euro) e uma réstea com quase meio-metro de alhos de sequeiro (5 euros) que durará até ao equinócio de Março.
Noutro Inverno, já não me lembro em que mês, também vimos este homem quando vínhamos dum passeio à Ericeira. Estava na mesma curva da estrada, com lugar para um carro estacionar ali à beira. Nessa altura comprámos dois sacos de feijão catarino cuja bondade ainda não conseguimos esquecer, cada vez que somos obrigados a transigir com feijões inferiores.
“O senhor tem dia para cá estar?”, perguntei eu, já sabendo qual seria a resposta: “Não, não, isto é conforme o dia e conforme a horta. Às vezes passam-se anos que cá não venho. Mas quando venho é mais de manhã...”
Por Portugal inteiro há homens e mulheres à beira das estradas. Mas os melhores são os que só aparecem de vez em quando, com os quais é impossível combinar o que quer que seja.
São sempre pessoas felizes sem jeito para vender. Fazem preços redondos que se traduzem bem em escudos: meio-euro (cem escudos) um euro (duzentos escudos) e dois euros e meio (quinhentos escudos). Não têm balanças nem tabuletas nem máquinas de calcular.
“Quer batatas?”, perguntou o homem. “São boas?”, perguntei eu. Não sei porquê, na presença da nobreza do povo, fico sempre estúpido, incapaz de abrir a boca sem me saír uma inanidade. De repente torno-me no presunçoso Marquês de Espinhosel, querendo saber se não tem rabanetes maiores ou se ele se importa de me temperar os espinafres.
Ele respondeu: “São. Quantas quer?” Eu respondi: “só quero duas ou três”. Ele riu-se e repetiu “duas ou três batatas?”. “Sim”, confirmei.
“Não”, explicou, “é que eu só vendo à saca”. Senti-me um forreta e um pelintra por não ser capaz de comprar uma saca e recolhi à viatura, devidamente humilhado.
Só conheço uma técnica que funciona. Para-se numa casa qualquer onde se veja um indivíduo à janela ou ao portão. Pergunta-se se ele tem laranjas, figos ou qualquer outra fruta, conforme a época. Ele diz logo que não mas, quando se tem sorte, revela que há um homem mais à frente, à beira da estrada, que tem. Pergunta-se quantos quilómetros e ele obrigatoriamente responde que é já ali.
Não há melhor estabelecimento gastronómico do que o homem à beira da estrada, a vender o que apanhou aquela manhã. Mesmo que se passem dois anos sem o ver, quando o vemos vale a pena o tempo todo que esperámos — e o apetite que fomos criando.