Maria João Esteves Cardoso

Deve-se sorrir, chorar ou devanear quando se comem passas e figos secos? A resposta é sim

É, por isso, ao mesmo tempo melancólico e feliz comer as doze passas à meia-noite, tendo já entrado no Inverno. Em cada passa que come há também a quarta estação: a Primavera de 2014, quando começarem a crescer as uvas que acabarão nas nossas bocas.
 
A fruta seca é a maneira mais bonita de guardar a fruta. Basta deixar que o sol e o ar façam o que fazem. Não é preciso cozê-la nem acrescentar-lhe açúcar nem perder grande tempo ou ter grandes cuidados com ela. Não é preciso saber nada senão esperar.
 
São bons os frutos secos que nos chegam da Turquia e doutros países sábios. Mas falta-nos o prazer de comer os frutos secos das árvores que conhecemos, que nos fazem companhia ao longo do ano. Por toda a parte se vêem árvores rodeada de fruta caída que para ali fica a apodrecer. Ou, mais correctamente, a ser comida por outras espécies que não a humana. Porque não podemos comprar fruta seca da nossa, que já foi fruta boa mas que sobrou ou  que logo se decidiu destinar para secar?
 
Temos a sorte de ter uma amiga erudita e delicada que vive no Algarve e conhece todos os segredos da natureza e das pessoas que vivem dela. Esta semana mandou-nos uma caixa cheia de mimos — bolinhos de amêndoa que são tão mágicos que só se deixam comer em série, até não ficar nenhum —, entre os quais houve um que nos fez sorrir como o gato da Alice no País das Maravilhas.
 
Eram uns figos-bolos com lasquinhas de amêndoas novas lá dentro. Eram obras-primas de alta confeitaria mas o bem que faziam à alma era associar o figo do Verão, já velhinho e seco, à amêndoa nova e empertigada do Outono.
 
A nossa amiga vive ao pé das figueiras que lhe dão os figos frescos e secos, das oliveiras que lhe dão o azeite e das laranjeiras que lhe dão as laranjas. Nunca precisa de comprar nada. Mas não é só a auto-suficiência dela que se inveja: é o luxo a que se dá e a felicidade que tem, tanta que sobra para dar aos outros.
 
A doçaria algarvia faz milagres com os figos e as amêndoas. As estrelas de figo e amêndoa são apenas uma das centenas de delícias que para lá se fazem. Se quiser ler um bom resumo, veja e leia o que a ilustre e benemérita Confraria dos Gastrónomos do Algarve diz sobre a doçaria algarvia.
 
Foi a Maria João, amor da minha vida e de cada dia que passo com ela, que me ensinou a apaixonar-me por passas. Ela come-as com o devido respeito e encanto, uma a uma, ao longo da tarde e do ano.
 
Distingue as brancas das tintas e as várias técnicas de secagem. Conhece-lhes o grau de doçura e de mirragem, classificando as diversas texturas, desde as mais sumarentas às mais austeras e concentradas.
 
Mostrou-me a tragédia que é as passas acabarem todas em bolos, misturadas com outras coisas. Se não fossem as passas muitos bolos estariam tramados mas, que diabo, poder-se-ia estabelecer um limite para essa emigração forçada, reservando-se 25% que fosse para o consumo de passas na forma pura, sem acompanhamentos ou badaladas desnecessárias.
 
Quem faz bolos não resiste a ir roubando umas passas para a boca. Por isso mesmo, os restaurantes poderiam ter pratinhos com passas e outras frutas secas (incluindo nozes, amêndoas e avelãs) para servir com a devida pompa e circunstância — e a pagar, porque as boas merecem ser caras e merecem ser pagas.
 
Desde os anos 60 do século passado que é fácil comprar passinhas da Sun-Maid, em caixinhas de 28 gramas. Vêm da Califórnia, são baratas, altamente portáveis e não se estragam, não precisam de refrigeração e estão sempre prontas para comer. Uma caixa tem dezenas e mais dezenas de passinhas e todas juntas só têm 90 calorias.
 
O único senão é não serem muito boas. As passas portuguesas são boas mas são difíceis de encontrar e vendem-se em pacotes impossíveis de transportar. Porque não copiam as embalagens perfeitas da Sun-Maid?
 
Sonho com uma imensidão de escolhas: passas das nossas várias castas, preparadas segundo as diferentes tradições regionais...
 
E depois desço à terra e lembro-me da paixão que temos para desperdiçar o que temos.