Com toda a pressa e todo o cuidado, deitemos as mãos às ginjas antes que elas desapareçam durante outra eternidade

O melhor dos aperitivos neste preciso momento (para a semana já não há) são as ginjas. Infelizmente são poucas as que restam depois de os (bons) produtores de ginjinha terem arrecadado os bocados deles.

Há pelo menos duas variedades de ginja à venda: uma é mais fresca, clara e leve e a outra é mais madura, escura e pesada. A primeira sabe mais a novo e a segunda tem um sabor mais amadurecido, mais próxima da ginjinha. Com ignorância total na matéria, chamarei às primeiras ginjas da manhã e às outras ginjas da tarde.

Há quem fale em ginja culinária, ginja licoreira e ginja de mesa. Mas não é comigo que tem falado. Às vezes penso que há um segredo das ginjas, guardado por quem tem ginjais, que não é para partilhar com forasteiros tagarelas como eu.

Aposto que deve haver muitas variedades de ginja. Mas apenas posso falar daquelas que eu conheço. Sei que dá sempre discussão porque muitas pessoas asseguram-me, suspirando, que dantes havia uma ginja maior e ainda mais deliciosa (a tal ginja de mesa) da qual as ginjas actuais são oblíquos descendentes.

O problema da ginja é servir para fazer o melhor licor (a ginjinha) e para fazer o melhor doce (o doce de ginja). Não me lembro da última vez em que bebi uma ginjinha caseira, daquelas que todas as famílias faziam por esta época. Conforme os costumes de cada casa, umas eram feitas com aguardente vínica, outras com aguardente bagaceira e ainda outras cometiam crimes perdoáveis (como deixar um pau de canela no garrafão).

Quanto ao doce de ginja - irresistível, o melhor doce alguma vez magicado -, só tive a felicidade de comê-lo duas vezes na vida, antes dos meus 19 anos. As versões que se compram para aí, geralmente estrangeiras, não têm nada a ver. Penso nele como pertencendo à minha infância, inatingível.

Mas, lá está, para pensar em fazer doce de ginja é preciso não comê-las enquanto estão ali, frágeis e fresquinhas, a pedirem para ser comidas.

Como aperitivo as ginjas têm a qualidade de um dry martini ou de um aviator bem feito. São adstringentes, acordando as papilas gustativas. As deste ano - particularmente deliciosas por terem um toque de doçura - têm até um traço de quinino.

Ao contrário das cerejas, que são sumarentas e matam a sede, as ginjas explodem-nos na boca e deixam-na seca, com sede de mais ginjas. Ainda bem que as ginjas não são alcóolicas porque, se fossem, estaríamos tramados.

Se as cerejas são anti-inflamatórias, as ginjas são uma força do bem. Basta comer três para começar a sentir o corpo a reparar-se. São como um remédio extremamente delicioso. Se me dissessem que contêm ácido salicílico, eu acreditaria, mesmo contra o que vem nos livros.

As ginjas são a única fruta da qual me poderia tornar fanático. Tenho de me conter para isso não acontecer. É um encantamento a cor translúcida da ginja em que cada esfera parece iluminada por dentro, por uma luz espessa que nos chama ao mesmo tempo que se esconde.

Antes de comer cada uma, tenho de olhar para ela e apreciar-lhe a identidade e magia antes de comê-la. É uma fruta que se faz respeitar.

É por isso que sugiro que se comam ao sol, antes do almoço, num balde cheio de água e gelo. Têm de tratar-se como ovos - não dá para pegar à mão-cheia - por serem tão finas. Ao comprá-las, se só estiverem algumas massacradas, não se trame com intransigência. Se a grande maioria estiver sã é porque toda a cadeia de gente que as trouxe até si teve uma trabalheira dos diabos para trazê-las nas palminhas.

Regra geral somos nós, os consumidores finais, que as estragamos, pondo-as no frigorífico ou (mais grave de todas as ofensas e moléstias) não as comendo imediatamente.

Tal como as outras, poucas grandes delícias do mundo a ginja merece ser comida sozinha, uma a uma, com uma lentidão respeitosa e uma atitude de subordinação. Tal e qual fosse um cocktail perfeitamente executado à sua frente. Só que executado por Deus.