Mitos que comemos
Documentários sobre o Colesterol (e não só) – a Grande Farsa
Nos dias de hoje a área da saúde e sobretudo a nutrição está cada vez mais semelhante à política.
Quando se pretende demonstrar um ponto de vista sem possibilidade de contraditório nem revisão de pares, formulando teorias conspirativas e apelando ao sentimento de revolta geral, existe uma ferramenta única para isso: chama-se “documentário”. As aspas justificam-se pois certamente existem documentários muito bons, mas um documentário (por melhor que ele seja) ainda não se constitui como prova científica da eficácia de qualquer tratamento, fármaco ou dieta. Por isso, quando nos deparamos com uma das epidemias do séc. XXI – a falta de honestidade intelectual – é perfeitamente possível produzir um documentário a dizer maravilhas e atrocidades do que quer que seja. Ficam aqui algumas da regras de outro para que isso aconteça. Um dos últimos casos chamou-se Colesterol – a Grande Farsa, e tem uma excelente análise crítica. Neste mundo ao contrário em que vivemos, também se poderia chamar Quimioterapia – a Grande Farsa, Vacinas – a Grande Farsa e por aí fora. Ficamos a aguardar com serenidade que alguns documentários mais interessantes como Água Alcalina/Água do Mar – a Grande Farsa, Homeopatia – a Grande Farsa ou Dietas detox – a Grande Farsa tenham igualmente espaço na estação pública de televisão.
Abordando a questão essencial, há ou não razões para ter medo do colesterol e que alterações na alimentação devem ser efectuadas nesse sentido?
Podemos dizer que o colesterol presente nos alimentos tem impacto no colesterol sanguíneo, mas um impacto relativamente pequeno, algo que faz sentido pensando que quanto maior o aporte exógeno de colesterol, menor será a síntese endógena. Além disso, existem factores genéticos que justificam que alguns indivíduos façam essa compensação de forma eficiente e outros nem tanto, podendo nestes, o colesterol proveniente da alimentação ter um papel importante. Em média, uma redução da ingestão de 200mg colesterol por dia (quantidade presente num ovo inteiro por exemplo), poderá reduzir os níveis de colesterol total em 10 mg/dL. O colesterol alimentar parece então a aumentar (em pequena extensão) quer o colesterol total, quer as fracções LDL e HDL, aumentando ligeiramente a relação LDL/HDL. Mas o mais importante de tudo é perceber se o colesterol alimentar tem alguma relação com a doença cardiovascular (que é o que realmente interessa e não o colesterol em si). E de facto, o colesterol presente na alimentação não parece ter grande impacto na doença cardiovascular, sendo que o mais importante é sem dúvida o perfil lipídico do nosso organismo, onde os triglicerídeos e a relação colesterol total: HDL, são os indicadores que quando elevados, mais aumentam o risco cardiovascular. Poderíamos encerrar a análise neste pedaço de história e andar a dizer aos sete ventos que o colesterol é de facto uma farsa e que toda a comunidade médica anda vendida à indústria farmacêutica porque é um discurso que hoje em dia realmente vende e traz para a ribalta “profissionais” oportunistas e sem o menor vislumbre de ética profissional.
Aprofundando melhor esta relação de colesterol e saúde, por cada 1% de aumento de LDL (“mau colesterol”), existe 1% a 3% de aumento de risco de um evento cardiovascular aterosclerótico. É um dado consensual que a redução dos níveis da fracção LDL do colesterol está indubitavelmente associada a uma diminuição do risco de enfarte do miocárdio e morte cardiovascular e que a exposição precoce a níveis de LDL aumentados (visíveis em indivíduos com hipercolesterolemia familiar) antecipam os seus sintomas para os 20-30 anos em vez dos “tradicionais” 50-60. Posto isto, parece muito difícil acreditar que o colesterol é uma farsa.
O que fazer então ao nível da alimentação?
Se considerarmos que um padrão alimentar caracterizado por elevada ingestão de gordura saturada e trans, elevada ingestão de colesterol, baixa ingestão de fibras solúveis (fruta, legumes, leguminosas, frutos secos, sementes), e elevado consumo calórico que leve ao excesso de peso e obesidade, é responsável por 25% do nosso colesterol em circulação, começamos a ver que não existe apenas um culpado, mas sim todo um estilo de vida que concorre para este aumento do risco. Ser criterioso com as fontes de colesterol da dieta é um bom primeiro passo, uma vez que já deu para reparar que com a sua ingestão podemos estar relativamente à vontade, mas não “à vontadinha”. Por isso, escolher fontes alimentares onde para além do colesterol existe, pouca gordura saturada e trans e muitos outros nutrientes quer com potencial antioxidante e anti-inflamatório, quer com potencial de diminuição da homocisteína (outro factor de risco cardiovascular) é um primeiro passo. E os alimentos que cumprem este pressuposto são o marisco, o polvo, as lulas, a carne sem pele e gorduras visíveis e finalmente os ovos (aos quais já iremos daqui a pouco). Quanto aos alimentos que não interessam, por não terem muitos nutrientes de relevo e por serem mais ricos em gordura saturada, trans e fundamentalmente calorias (é mais fácil engordar comendo alimentos mais ricos em gordura do que ricos em hidratos de carbono pelo simples facto de nos engordarem com menor quantidade de alimento), temos a manteiga e tudo onde ela está presente desde molhos até bolos, queijos gordos, folhados, natas e enchidos. Não quer isto dizer que se deva eliminar totalmente a gordura da alimentação e trocá-la por hidratos de carbono, mas sim efectuar um balanço equilibrado, uma vez que, hidratos de carbono em excesso podem ser igualmente nocivos e o nosso perfil lipídico sanguíneo também é afectado por um abuso nos hidratos de carbono reflectido num aumento da carga glicémica da alimentação. Quanto aos ovos, certamente não passaram de “três por semana no máximo” para “três por dia no mínimo”, até porque quando analisamos a relação do seu consumo com doenças cardiovasculares, cancro e mortalidade geral, os dados não são animadores ao ponto de liberarem o seu consumo indiscriminado, sendo que o mais seguro será não ultrapassar uma média de um ovo por dia. Engraçado constatar que o leite de forma geral até apresenta evidência epidemiológica tão ou mais saudável do que o ovo, mas nos sítios que parecem realmente interessar hoje em dia (leia-se Facebook, Instagram e YouTube), o leite veste capa de demónio e o ovo de anjo.
O objectivo deste artigo é falar mais de alimentação do que sobre estatinas, mas todos os interessados/histéricos sobre o efeito “maléfico” destas, podem igualmente consultar este artigo. O ideal será sempre não precisar de uma estatina, mas bom mesmo é ter um estilo de vida que evite essa necessidade. Ainda assim, mesmo que se assuma que de facto existe uma sobreprescrição médica de estatinas, analisemos a questão de uma outra perspectiva: quantos pacientes estão de facto dispostos a mudar o seu estilo de vida com melhor alimentação, mais exercício e menos tabaco e quantos preferem tomar “a pastilha do colesterol” que mantém os valores artificialmente controlados? Antes de culpar os outros, há que fazer este exame de consciência e ver inicialmente o que está ao nosso alcance mudar. Quanto a suplementos nutricionais, que possam fazer o mesmo efeito, não é nada romântico (muito menos para um nutricionista) dizer que as estatinas têm de facto um papel mais eficaz na redução do risco cardiovascular do que os recém endeusados ómega 3, que têm vários benefícios, e complementam o papel das estatinas mas não podem ser vistos como medicamentos. De resto, este é mais um exemplo de que levar ao extremo a máxima de Hipócrates “que o teu alimento seja o teu medicamento” é uma atitude muito perigosa. Por mais que a alimentação seja absolutamente fundamental para a diminuição do risco de doença e aumento da longevidade e qualidade de vida, não existem alimentos ou suplementos que mimetizem o papel de alguns fármacos e tratamentos e por isso a comida é comida, não é medicina.
Nos dias de hoje a área da saúde e sobretudo a nutrição está cada vez mais semelhante à política. Parece mais importante ter uma boa argumentação mesmo que se baseie em diversos tipos de falácias, factos falsos ou escolhidos de forma desonesta, do que uma prática clínica baseada na evidência. Uma das formas de conseguir detectar um destes falsos profetas é muitas das vezes a excessiva segurança que transmitem nas suas intervenções, até porque um dos mantras que mais sentido faz na vida de qualquer pessoa é o not young enough to know everything (traduzindo, “não sou suficiente novo para saber tudo”). Quiçá, seja o facto de se tentar a toda a força chegar novo a velho que justifique uma mente cheia de certezas e uma prática profissional vazia de evidência científica.