Mitos que comemos
O estranho caso das dietas sem hidratos de carbono
Terminada a época festiva todos pensam em recuperar dos quilos ganhos e entrar em “modo dieta”.
Terminada a época festiva todos pensam em recuperar dos quilos ganhos e entrar em “modo dieta”. E “como toda a gente sabe”, dieta que é dieta não pode ter hidratos de carbono. Uma das incongruências deste pensamento (e que inúmeras vezes se assiste em consulta) é o incorrecto reconhecimento daquilo que são os hidratos de carbono. E regra geral, a pessoa que foge do arroz, massa e batata como o diabo da cruz é a mesma que ataca as gelatinas ou vários quadradinhos de chocolate preto à sobremesa; que lancha bolachinhas de aveia ou “Marinheiras” ou que só em batidos “detox” consome mais de cinco porções diárias de fruta.
Existem porém outros casos onde a restrição de hidratos de carbono está totalmente extremada e a sua ingestão é praticamente inexistente. No fundo, “cortar” nos hidratos é uma medida bastante apetecível porque acaba por resultar a curto prazo e provocar um brilharete inicial. Retirar todos os hidratos de carbono da dieta provoca uma diminuição brusca de peso, porque cada grama de glicogénio é armazenada no nosso músculo e fígado associada a 3-4 gramas de água (apesar de existirem grandes diferenças interindividuais) e como a água também pesa, a balança agradece. Mas a longo prazo, talvez fosse mais eficaz procurar um brilharete no seu volume, nas suas medidas, na sua roupa e no seu espelho do que no número que aparece na balança.
Logicamente que para pessoas sedentárias, uma restrição crónica de hidratos de carbono é uma estratégia perfeitamente aceitável uma vez que um “carro que não anda”, não necessita de tanta “gasolina”. Mas mesmo nestes indivíduos, uma quantidade à volta das 120 g diárias de hidratos de carbono são necessárias para “alimentar o cérebro” uma vez que este apenas se alimenta de glicose. Caso este valor mínimo não seja atingido, o mais provável será a mobilização da nossa proteína muscular para formar glicose, uma vez que não conseguimos fazer o mesmo com os ácidos gordos da nossa dieta e reservas de gordura.
Quando damos ao nosso corpo menos energia (calorias) do que aquilo que ele precisa para o desempenho de todas as suas funções vitais, a sua resposta vai no sentido de diminuir automaticamente o nosso gasto energético. Ficamos assim mais “poupadores” e eficientes que é exactamente o oposto do desejado para quem quer aumentar esse desequilíbrio entre calorias ingeridas e gastas, sendo que algumas hormonas possuem a este nível um papel fundamental.
Um breve resumo das alterações hormonais que ocorrem nesta fase são: uma diminuição da leptina e consequente aumento do apetite e diminuição do gasto energético; diminuição da produção de hormonas tiroideias (que possuem um papel estimulante); diminuição nos níveis de insulina, que possui um papel fundamental na diminuição do catabolismo muscular, apesar de ser vista como a má da fita (que o é quando a ingestão de hidratos de carbono – particularmente açúcares – é tão grande e consistente ao ponto de promover uma resistência metabólica à sua acção).
Por outro lado, esta restrição quando excessiva aumenta a grelina (uma hormona “esfomeante”) com consequente impacto no aumento do apetite e o aumento do cortisol, hormona que quando cronicamente elevada induz uma perda de massa muscular, retenção de líquidos, acumulação de gordura na zona visceral e um grande desejo por doces. E nesta fase é caso para perguntar quantas pessoas se revêm nesta situação de treinos diários, quase inexistência de hidratos de carbono na dieta e corpo exatamente na mesma?
Refira-se em abono da verdade, que muitos indivíduos nem chegam a entrar nesta “adaptação metabólica” uma vez que o irresistível desejo por doces (particularmente no pós jantar) boicota quer estas adaptações hormonais negativas, quer a restrição calórica que se exige para o emagrecimento.
Ainda no âmbito hormonal, podemos ver que no caso dos homens, mesmo com reduções ligeiras da ingestão de hidratos de carbono (30% do valor energético total), a razão testosterona/cortisol diminui, e que um processo de emagrecimento diminui por si só a testosterona (em alguns casos a níveis infrafisiológicos), mesmo com aportes modestos de hidratos de carbono (de 4,5 a 2,5g/kg peso respectivamente).
A magnitude destas mudanças está igualmente relacionada com o diferencial energético imposto, daí não ser à toa que se recomenda uma perda de peso gradual de modo a preservar o máximo de massa muscular e manter os níveis hormonais estáveis dentro do possível. Também a existência de treino de força e um aporte proteico adequado (tendo em atenção que proteína em excesso à custa de uma redução excessiva de hidratos de carbono também não é benéfica) são medidas absolutamente indispensáveis para uma perda de peso de qualidade.
Mas então, estando o “caos metabólico” instalado o que fazer? E neste caso a palavra chave é mesmo: paciência! Muitas destas modificações hormonais podem levar até um ano a reverter, e como tal será necessária alguma perseverança neste processo. Do ponto de vista nutricional, a melhor forma de tentar reverter esta situação é aumentar ligeiramente e gradualmente a ingestão calórica e de hidratos de carbono. Apesar de não existirem grandes estudos a consubstanciar esta “dieta reversa”, a abordagem empírica de alguns atletas prova que este será o caminho certo a escolher.
O facto de muitos bodybuilders se “encharcarem” em calorias, e particularmente em hidratos de carbono na sua “cheat meal”(refeição da asneira) após uma semana de restrição ligeira, de modo a aumentar estas hormonas é um bom exemplo de boas práticas de uma população com a qual muito se pode aprender sobre autodisciplina e manipulação de composição corporal (em vez de constantemente demonizar pela toma de exagerada de suplementos e esteroides anabolizantes).
Não esquecer igualmente que a palavra chave nestes casos é a prevenção. Constantes oscilações de grande magnitude no peso não beneficiam em nada o seu controlo a longo prazo e a cada “engorda” o número de células gordas vai sempre aumentando tornando este processo cada vez mais difícil. Mesmo que seja bem sucedido a recuperar os quilos ganhos, as necessidades energéticas do nosso organismo serão sempre inferiores do que eram com o peso inicial, sendo que estas mudanças persistem novamente até um ano e favorecem logicamente o reganho desse peso e este ciclo negativo.
Concluindo, para a infelicidade de alguns, a optimização da composição corporal só tem um segredo: comer bem, treinar melhor e fazê-lo com consistência! Cada repetição conta, cada hora de sono conta e cada refeição conta.
Que 2016 traga menos casos de “adaptação metabólica”…