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Mitos que comemos

Oh não, mais um artigo sobre o leite!

Nunca antes na história existiu uma partilha tão desenfreada de informação sobre nutrição e alimentação.

Nunca antes na história existiu uma partilha tão desenfreada de informação sobre nutrição e alimentação. O surgimento contínuo de blogues, páginas de Facebook e Instagram com “dicas” e artigos sobre alimentação tem até um lado positivo que é a de colocar os profissionais da área “em sentido” e estimular o estudo constante para estarem sempre na “crista da onda” e se diferenciarem dos demais.

Por outro lado, temos um fenómeno que diaboliza ou sacraliza determinados alimentos de tal modo que hoje em dia um “plano alimentar da moda” quase que tem que possuir “obrigatoriamente” aveia, ovos, frutos gordos, frutos vermelhos, abacate, atum, batata-doce e proteína whey (que são por sinal óptimos alimentos mas convém saber em primeiro lugar se o paciente os consegue incorporar na sua alimentação) e excluir o trigo e os lacticínios. E chegados a este ponto, apesar desta rubrica se ter iniciado com um artigo sobre o leite, vamos voltar à carga sobre este tópico com algumas respostas simples a questões algo complexas:

Não devemos beber leite pois não estamos “adaptados” para ele, afinal a prevalência mundial de intolerância à lactose é de 70%!
Em Portugal esta prevalência é bastante menor (estima-se que na ordem dos 40%) e a persistência da lactase existente em algumas populações conferiu, em determinado momento da história, uma vantagem à sua sobrevivência sendo a tolerância à lactose justamente o resultado dessa selecção natural. Aliás, se o argumento de “o nosso organismo não está adaptado a…” fosse aplicado a todos os alimentos que existem hoje mas que não existiam há 15 mil anos atrás, provavelmente teríamos muito pouco para comer.

O leite “acidifica” o organismo?
De todo. O potencial renal ácido do leite é relativamente neutro e como tal este chavão não faz qualquer sentido. Dentro dos lacticínios, a maior moderação deverá ser com os queijos curados que estes sim possuem uma “carga ácida” mais elevada, tendo sempre em conta que o potencial “acidificante” dos alimentos é apenas um pormenor na nossa alimentação.

O leite é promotor de cancro?
Foi o potencial efeito nefasto do consumo de leite no desenvolvimento do cancro da próstata e do ovário que levou a Universidade de Harvard (numa escolha muito selectiva de artigos diga-se de passagem) a retirar (e não excluir) o leite do seu prato saudável. No entanto quando se faz uma revisão séria desta ligação, como foi feita aqui, conclui-se que o leite, apesar de possuir na sua composição hormonas como o IGF-1 (que já agora é substancialmente reduzido em iogurtes e leites fermentados) com efeito funesto no desenvolvimento tumoral, não aumenta o risco de cancro da próstata (sobretudo se consumido na sua versão magra) e pode inclusive ter um efeito protector no cancro da bexiga, mama e colon, quando consumido até 3 porções diárias. Que não se entenda todavia que estamos perante um “néctar” divino que pode ser ingerido sem moderação. Para além da IGF-1, também os estrogénios presentes no leite parecem ser absorvidos e induzir algumas alterações hormonais no nosso organismo, algo que é particularmente relevante na fase pré-pubertária, existindo alguns indícios de que um consumo elevado de leite nestas idades pode potenciar o surgimento de menarca precoce ou aumentar o risco de cancro da próstata na idade adulta. Traduzindo por miúdos, sendo o leite substancialmente melhor que refrigerantes não é para beber como “quem bebe água” (e quem não conhece adolescentes que bebem litradas de leite), não esquecendo que os lacticínios conjuntamente com alimentos açucarados, gorduras saturadas e trans fazem parte de uma tríade altamente potenciadora do acne, outro dos problemas bastante recorrente nestas idades.

O cálcio do leite é essencial para a saúde óssea?
Não! E nem é líquido que quem bebe mais leite tenha menos fracturas! Ainda assim, os lacticínios são a forma mais conveniente de “ir buscar” o cálcio à nossa dieta, apesar de existirem outros alimentos fantásticos igualmente ricos em cálcio como a sardinha em lata, gema de ovo, amêndoa, feijão e couve-galega, mas que, ou por menor teor de cálcio por grama de alimento, ou por uma menor biodisponibilidade do seu cálcio, fazem com que se tenham de comer estes alimentos diariamente e em porções um pouco acima do que estamos habituados. Em todo o caso, um estilo de vida que previne a osteoporose tem necessariamente treino de força, exposição solar ou suplementação em vitamina D e muito controlo no álcool e tabaco.

O leite potencia a diabetes tipo II?
Se é certo que a já falada IGF-1 não é nada benéfica no que diz respeito à diabetes, é igualmente certo que outros componentes “major” do leite podem ter um efeito protector. Aliás fazendo uma rápida pesquisa sobre a carga glicémica de alguns alimentos, rapidamente se constata que os lacticínios estão no fundo desta tabela (sendo certo que um açucarado leite achocolatado não é a mesma coisa que um iogurte magro sem açúcar), e como tal não serão certamente um factor de risco para o desenvolvimento de diabetes tipo II. Já no que diz respeito à diabetes tipo I e outras doenças auto-imunes o leite pode de facto não ter um papel tão inofensivo, mas a especificidade de todas estas patologias não permite a sua abordagem neste já longo artigo.

Muitas outras questões ficaram por esclarecer mas o que podemos afirmar sem sombra de dúvida é que o leite não tem nada que faça dele um alimento essencial como não tem nada que faça dele um veneno comparável à manipulação da informação científica. E por isso, a ser bebido que seja magro ou ainda melhor, que seja trocado por iogurte ou leite fermentado.

Quanto à sua diabolização, parafraseando um grande ícone da comunicação fica também aqui um alerta a todos os profissionais de saúde: A melhor arma contra a má ciência é a vigilância, por isso “if you smell something, say something”…