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Quem não tem filhos caça com cão

Diz-se que o futuro é das crianças mas receio que venha a ser dos cães. Vislumbro boxers, rotteweilers e perdigueiros a comerem pão-de-ló servido num prato com o rato Mickey que a vovó comprou. Imagino gatos siameses, persas e rafeiros a assistirem à sua guarda conjunta ser disputada em tribunal pelos donos, leia-se, pais. Consigo até fantasiar todos estes animais enfiados num autocarro de escola e a acenarem com as orelhas aos papás e mamãs, antes de arrancarem para a actividade de praia em Agosto.

É só uma visão. Porque já passa da meia noite e fiquei com insónias após ter lido que “cada vez há mais animais domésticos do que filhos, nas nossas casas”. Quase mais animais do que filhos, repito em voz alta. Ninguém me mandou ir para a cama com A família portuguesa no século XXI – Um livro obrigatório para compreender Portugal. O número não me sai da cabeça: “...estima-se que haja mais de um milhão de cães nas casas do país. Quase tantos cães como crianças até aos 15 anos” – leio mais adiante. Pergunto-me: quem é que dorme descansado ao realizar que amanhã vai acordar num país onde quem não tem filhos caça com cão?

- Termos um segundo filho, amor? Não sei... Vamos antes adoptar um cão.

- Será? Olha que os veterinários privados são caros e vamos gastar uma pipa de massa em vacinas e desparasitantes... E teriamos de levá-lo connosco de férias pois não temos com quem o deixar; aliás, a tua mãe só se reforma daqui a quatro anos...

- Querida, não te preocupes. E é só por uns 15 anos. Se fosse um filho tinhamos de o sustentar no mínimo 30 anos.

Já se sabia que o país anda a parir poucochinho, um bebé de cada vez, a tal política do filho único que não está legislada mas impera. E que nós, humanos, damos à luz um filho de cada vez (quase sempre) e não às ninhadas, o que nos deixa no final da fila das espécies de famílias numerosas. Mas um béu-béu não é alternativa a um gugu dadá. Ou não deve ser.

Comprova-se que os cães andam mesmo a ladrar às caravanas que passam e nós, humanos, não sabemos sequer ladrar devidamente às políticas de natalidade com que nos atiçam. Contentamo-nos com o osso lambido, pomos o rabo entre as pernas e ficamos a ganir em frente à televisão.

Cresci com animais em casa e gosto muito de cães. Aliás, gosto de todos os animais, excepto os que rastejam (humanos incluídos). Mas daqui por 20 anos, não quero viver num país com mais canis do que creches. Não quero ir ao hipermercado e esbarrar com carrinhos cheios de ração em promoção. Não quero que a minha amiga Ana venha a ser mãe de um par de cágados. E não pretendo ir ao chá de bebé da vizinha que adoptou um gato anti-alérgico. Numa época em que se instalam novos modelos de família, monoparentais, homoparentais, adoptivas, só falta abrir um jornal que noticia as novas famílias bichoparentais.

- Tens irmãos?

- Sim, tenho um. O Roy. É um pug e a mamã passa a vida a dizer-lhe que é lindo, coitado. Ainda bem que eu saí ao papá.

Cá está um cruzamento familiar a evitar. Mas como? Será com direito a meia jornada de trabalho e meio salário? Com um acréscimo de meia dúzia de dias de licença paternal? Porque as mães, essas trabalhadoras abusadoras, já usufruem de cinco meses a passear a pevide, salvo seja. Ou será com verbas de premiação das câmaras? “Tome lá 500 euros por ter tido um filho. Aconselho-a a comprar o enxoval do bebé no Olx para ver se o dinheirinho rende”.

Continuo a imaginar os cães sentados no autocarro da escola a caminho da Costa da Caparica. E penso se haverá algum político que nos pudesse safar deste cenário. É que eu votaria em qualquer um que demonstrasse faro suficiente para entender que os incentivos à natalidade (estendendo-os pela infância) são a decisão mais importante do futuro do país. A fim de evitar uma interpretação literal de que “há vezes em que a paternidade não parece mais do que alimentar a boca que te morde” e para que o cão possa continuar a ser o fiel amigo do homem e não o seu filho.