Daniel Rocha

Um exército de crianças poderia salvar o mundo

Uma parte do mundo está desempregada, desesperada e em fuga mar adentro. A outra parte está mal empregada, deprimida e de pés atados em terra segura. Nenhuma se encontra bem de saúde: a primeira corre perigo de vida, tem fome e chagas abertas na pele e no coração; a segunda, sofre de medos, ansiedades, depressões. Se ambas se olhassem frente a um espelho, cruzariam os olhos, e se esticassem as mãos, talvez vivessem a ilusão de se tocarem e quase se sentirem. Uns levantam as mãos aos céus implorando ajuda, os outros mal conseguem esticar os braços livres e decidir entre ajudar ou pedir ajuda. E as mãos não se dão.

Se me arrependo de ter dado à luz neste cenário sombrio? Nunca. Talvez porque colocar uma criança no mundo, hoje, é um crime inevitável. Somos todos, mães e pais, criminosos inimputáveis. O motivo? Passional, claro. O amor.

A cada dia que a minha filha cresce, mais acredito neste amor e menos em tudo o resto. Capitalismo, política, religião – principalmente. Mas a minha confiança quebra-se igualmente perante clubismos de toda a espécie. Tolerar bem, resistir mais é o lugar mais confortável que encontrei para viver. É como viver no campo, mais arejado. Em verdade, estou-me a lixar para um lugar no paraíso. Não me interessa uma carreira. Sim, já votei em branco. Simpatizo com o Benfica mas também com o Sporting. Não baptizei a minha filha, para desgosto de alguns familiares e sinto-me incapaz de lhe furar as orelhas antes dos 18 anos. Não sou casada, ali no papel, mas não nego uma ciência conhecida à partida. Já menti e traí. E acredito que o purgatório existe, mas é aqui, nesta terra prometida.

Sou (somos) uma refugiada desta metade anestesiada do mundo. Mas tenho dois bracinhos e é preciso acreditar que entre cobardias e alegrias, entre não ter (termos) respostas nem soluções, entre os dilemazinhos capitalistas do dia-a-dia, conseguirei (conseguiremos) dar a mão a alguém.

Quanto à minha filha, já anda por cá a brincar às espadas e a alimentar bonecas sem saber que o mundo está feito em dois cacos gigantes. Vou armá-la de tolerância e desejar que sobreviva feliz neste mundo pois é toda a herança que terei para lhe deixar.

- Filha, deixo-te o mundo regenerado. – Gostava de poder dizer-lhe um dia, se possível daqui a muitos anos (no que toca à minha vida e não à cura do mundo).

É que de todas as histórias que tenho escutado, a mais real é esta: que as crianças são anjos. E é disto que o mundo precisa para se curar, muitos anjos – pois sonho com um exército de crianças que poderia salvar o mundo.