Mães há muitas

O mimo é o conceito cujo valor mais tem subido nas últimas décadas
Chegou mais um Dia da Criança. Se tem filhos pequenos e quer mimá-los, comece por ir buscar a sua carteira e veja quanto dinheiro tem lá dentro. Apenas cinco euros? Esqueça. Ligue a televisão e sente-se com a criança mostrando-se entusiasmado para ver a programação especial da tarde. Não adormeça no sofá nem se entretenha com o telemóvel pois é suposto, pelo menos hoje, assistir com o seu filho a vários episódios do "Jake e os Piratas da Terra do Nunc"a ou à "Princesa Sofia".
Afinal descobriu mais 20 euros no bolso de trás das calças? Bem, já compensa ir gastar gasolina e chega para comprar um gelado. Então, apague a televisão e vá a um dos eventos que a câmara da sua cidade preparou para esta data. A animação é garantida mas tem de chegar cedo pois nestas celebrações gratuitas, o último não ri melhor. O mais certo é estacionar longe, apanhar tudo sujo, assistir ao espectáculo na última fila e as ofertas das marcas já terem esgotado. Este ano, a nossa GNR-Guarda Nacional Republicana apostou num evento com a Barbie e o Ken, fardados de polícias, para animar pais e filhos. Só pode ter sido para ver se as crianças começam a simpatizar mais com a autoridade.
Tem dinheiro no bolso, no cartão e no banco? Está cheio de sorte e, assim sendo, é mesmo para si este dia, perdão, para o seu filho. Há um mundo de sugestões a aproveitar. Uma leitaria no Porto lançou um éclair especial com recheio de Nutella para que filhos e pais possam saborear juntos. No Algarve, um hotel organiza uma festa para crianças recebendo-as com cocktails de frutas, coloridos, prometendo ainda um buffet de guloseimas. Imagino uma linda cascata de gomas de bananas. Várias revistas e jornais anunciam listas de dez presentes apropriadíssimos para os pais (e todos os que usufruem do estatuto de padrinhos e madrinhas) oferecerem às suas crianças: sandálias Birkenstocks com o rato Mickey pela módica quantia de 74,90 euros, alpergatas Lion of Porches a 54,90 euros ou uma mala de viagem Rimona por 299 euros. É evidente a relevância da mala, que o seu filho irá mesmo precisar, quando lha quiser colocar à porta de casa porque “já tens 42 anos e precisas de ganhar independência”.
Mas se é daqueles pais que se vanglorizam por rentabilizar tempo, então, junte o útil ao agradável: se precisa trocar de pneus, aproveite uma campanha em que na compra de dois ou quatro pneus, lhe oferece um brinquedo; se preferir tratar dos seus próprios pezinhos, leve aquele par de sapatos velhos a arranjar e ganhe um par de atacadores. Válido só no Dia da Criança!
O que é o mimo, afinal? Um conceito tão galopante quanto as actualizações dos iPhones? E até que idade se é criança? Porque há algumas com mais de 30 anos que ainda recebem presentes a 1 de Junho.
É irrefutável a importância desta data, que já conta com 65 anos de existência, e da sua comemoração todos os anos, relembrando os direitos das crianças. Pode e deve-se festejar com os inúmeros eventos, ateliers, actividades de rua ou em museus, quase todos a convergir para o único propósito de dar um dia feliz às famílias. Mas, separando o trigo do joio, são poucos os eventos e marcas que usam a sua visibilidade para ajudar as crianças que ainda não alcançaram estes direitos. No Dia da Criança vamos fazer acções para as que têm direitos (aparentemente assegurados) e os paizinhos que as tragam cá. É mais ao menos isto. E se não é, parece.
Será que as crianças sabem porque é que este dia é tão especial? Quantos pais, entre a decisão de comprar ao filho de 11 anos um smartphone ou levá-lo ao cinema com direito a balde grande de pipocas, se lembram sequer do propósito do dia?
É claro que todos os pais devem mimar a sua criança, como bem entendem. Mas antigamente, os mimos eram mais baratos e simbólicos. O mimo é o conceito cujo valor mais tem subido nas últimas décadas. Daqui a dez anos como é que vamos mimar as crianças?
Dar um beijo. Dizer aos nossos filhos o quanto gostamos deles. Fazer um bolo, juntos, em casa. Ou cozinhar-lhes o prato favorito. Escolher um velho brinquedo ou uma roupa para dar a outra criança. Deixar um queque pago para a próxima criança que entrar no café da rua. Permitir ficar acordado até um pouco depois da hora. Acho que é disto que as crianças, pelo menos as pequeninas, ainda gostam. Será que as nossas crianças estão a crescer com a noção de que estes pequenos gestos são mimos?
Este dia é para todas as crianças cujas histórias assistimos do nosso sofá, frente à televisão, ou cujas histórias não chegam sequer ao conhecimento da imprensa, dos vizinhos e até de familiares, e que não têm ainda assegurados, um ou vários destes direitos: não serem discriminadas por raça, cor, sexo, religião e origem nacional ou social; direito a afecto, amor e compreensão; direito a alimentação adequada; direito a cuidados médicos; direito a educação primária gratuita; direito a protecção contra todas as formas de exploração; direito a crescer num ambiente de paz e fraternidade universais.