Daniel Rocha

A vingança da mamã

Quando for velhinha vingo-me da minha filha: vou viver com ela. A desculpa perfeita é que não devo vir a ter reforma, pelo que não terei outro remédio, querida. A modos que me instalo em sua casa, no quarto ao lado. Nessa altura, deverei ver muito mal e peço-lhe que deixe uma luz de presença acesa toda a noite. Terei muita sede e chamo-a para me alcançar o copo de água: – Obrigada Laurinha, que seria de mim sem ti. Faço isto uma dezena de vezes por noite, como quando ela era bebé, o que me arrastava sonâmbula a apanhar-lhe a chucha.

Porque velhos ou bebés, vai dar ao mesmo. Os cuidados incluem banho, alimentação, dormida, não necessariamente por esta ordem, não necessariamente todos os dias. Mas vou precisar de quem me dê banho quando tiver 80 anos, se lá chegar. E se chegar, terei medo de escorregar na banheira e morrer vergonhosamente. A sodona Sofia teve uma vida discreta mas morreu na banheira, nua e em posição suspeita. Por isso, direi à minha filha: "Senta-te aí na sanita e passa-me o gel de banho. Quando eras pequena, gostavas mais de mim ou do teu pai?"

A água está quente, peço-lhe que ponha um pinguinho de fria, raistaparta a miúda que me quer queimar viva. Imploro-lhe: Oh, menina, certifica-te que estou mais morta que um morto antes de autorizares o crematório, prometes-me? Quem te escaldava em miúda era o teu pai, que Deus o tenha, um homem quente sem noção de temperamento mediano. Onde é que vais? Traz-me o roupão pois não posso apanhar um resfriado, vá.

Finalmente, calo-me cinco solenes minutos, preciso respirar porque sou velha, sempre fui alérgica e quando falo muito falta-me o ar. Retomo a ladainha geriátrica e pergunto: – Que dia é hoje? É sexta-feira, mamã. Bem me parecia, é dia de manicure, sempre tive mãos impecáveis, impecáveis. Excepto no ano em que nasceste, nenhum minuto para as arranjar. Anda, procura nas fotografias dessa altura e dou-te o anel que era da avó, caso encontres uma fotografia, só uma, em que eu tenha as mãos arranjadas. Só quando começaste a andar a sério é que me devolveste as mãos.

E a minha bebé ri-se numa cara quarentona. Quando as nossas filhas nos aparecem à frente com rugas, sabemos que estamos senis. Massacro-a com perguntas: – Qual dos teus maridos gostas mais? No meu tempo só tínhamos um. A bem dizer sempre me achei moderna das ideias dos outros. Devia ter nascido agora que a lei permite esta boa-vergonha. Proponho-lhe: – E tu, filha, tinhas nascido na minha altura, trocávamos de papéis, tinhas sido a mãe e eu a filha da mãe. Ela, respondona: – Como agora, mamã.

Tenho fome. Antecipando o meu apetite, a Laura aparece vinda do corredor com uma sopinha quente e sem sal. Engoli a vida inteira com sal. Agora, aturo esta senhora a esconder-me o saleiro tal como eu lhe escondia as bolachas Maria. É que a miúda via uma bolacha e parava o mundo. Sempre foi gulosa, herdou-o de mim. Muito cuidadosa traz-me ainda um prato de empadão, receosa que me engasgue. Gabo-lhe a generosidade, não tanto pelos dentes que me restam mas mais pela sua inteligência em não me dar ossinhos e durezas que nos tragam a ambas preocupações acrescidas. Porque na minha idade, um engasganço pode levar à morte. E a minha filha, valente, é mulher para me virar do avesso e me dar pancadas nas costas, mas mais vale prevenir com empadão. Pena o puré estar cheio de grumos, digo-lhe?

Depois hei-de ter maleitas, muitas. Ouvirei mal, pelo que aumento o volume da televisão. Se ainda existirem comandos tratarei de carregar em vários botões ao acaso e dizer: – Desculpa filha, a televisão deixou de ter imagem, que maçada. Vou sofrer de incontinência, mas só um bocadinho, o suficiente para ela me trazer fraldas do supermercado. Haverá dias em que as mãos me tremem e vou precisar que segure os talheres por mim, pulso pendurado no ar enquanto termino de mastigar. Os velhos são como as crianças, adoram comer, mesmo que seja com as gengivas.

Quando a quiser enervar vou para a cozinha. – Querida, chegaste mais tarde do emprego e eu, entediada, fui para a cozinha adiantar o jantar. (Ela nunca me deixa entrar na cozinha). Queria fazer pastéis de bacalhau. – Filha, vivi portuguesa, não posso morrer sem os ter feito uma vez na vida. E são tantas as coisas que ainda me faltam fazer, como aprender a andar de bicicleta. Levas-me a Monsanto e ajudas-me a subir para o selim? E a Laurinha, boazinha, a minha miúda, às voltas para enfiar a bicicleta no carro. Quando eras bebé, só o ovo de transporte pesava três quilos e o porta-bagagens era todo teu: cama de viagem, carrinho-bengala, saco de brinquedos. Já te disse que eras linda? (Dou sempre uma no cravo e outra na ferradura). Sim, mamã, genes do pai.

A minha bebé é linda, sim. Mas a cereja no topo do bolo? É que vou educá-la tão bem que ela vai fazer tudo isto com o maior dos amores. Está bem pensado, pois está.