Mães há muitas

Os dentes também servem para morder
Devíamos nascer já com os dentes todos na boca. Bebés a arreganhar os dentinhos no primeiro choro de vida. Porque os dentes de leite nascem, um a um. Para depois caírem, um a um. Para depois ainda romperem novos dentes, supostamente até ao fim da vida, para quem os estimar. Este dente-por-dente é uma tortura pouco humana para uma raça evoluída.
Além de que os dentes deviam ser de cimento branquinho e inquebráveis. Acabavam-se os sorrisos amarelos e erámos todos mais felizes.
Há várias noites que ninguém dorme cá em casa. Estão quatro dentes a nascer, ao mesmo tempo, à minha filha. Podia ser apenas um, mas não, estamos perante quadrigémeos. À noite ouvem-se gemidos e gritinhos. De dia, a miúda tem ataques de canibalismo com qualquer coisa que agarre para levar à boca. Ontem, dei com ela a trincar uma porta. A coisa podia ficar por aqui. Mas vêm mais dentes a caminho para morder os nervos à família.
E para quê este denticídio? A maior parte dos humanos morre careca das gengivas, tal como nasceu. Não conto com placas ou implantes. Estou convencida é que estas dores de crescimento são um mal desnecessário.
Claro que é bom ter dentinhos para trincar um prego e ficarmos com a bifana pendurada na boca ou para dizer a alguém que “tens uma coisinha verde entre os dentes”. Mas a verdade é que podíamos viver sem este entretenimento oral. Bastava sermos todos desdentados. E evitávamos ouvir um “tens dentinhos até ao rabo” quando estamos esganados de fome.
Quanto à Fada dos Dentinhos, que se lixe a senhora: sabemos bem que ela não existe. Ninguém transforma dentes em estrelas no céu. Aliás, o céu está cheio. Com dentes, avós, cãezinhos, chuchas…. Por culpa dos pais que decidem enviar lá para cima as suas explicações para tudo o que deixa de existir.
Outra coisa que se evitava era lermos notícias sobre a existência de um jovem alemão, 23 anos e dentes impecáveis, que fez um buraco em cada bochecha, onde colocou um alargador, para se verem os dentes de perfil. Bonito. Aposto que este miúdo já devia morder na creche.
Ter dentes só para mastigar, cortar, triturar não basta para compensar as dores, cáries e ídas ao dentista. Se temos de viver conjugalmente com os nossos dentes, deviamos tirar mais partido da relação. Porque precisamos de uma boa razão que compense esta estucha. E só me ocorre uma: morder. É o que os bebés fazem. A Laura que morda tudo o que puder agora, não lhe tiro esse gostinho. Porque morder pode ser uma forma de expressão eficaz quando as palavras não resultam.
Toca a fincar a dentadura em quem nos apetecer. Resolver as coisas à dentada fazendo justiça com os nossos próprios dentes. Por exemplo, hoje estou capaz de morder a funcionária do centro de saúde. Na orelha, para que ela fique impedida de atender mais chamadas telefónicas aos utentes. Só que, em vez disso, vou acabar por morder a própria língua e esboçar um sorrisinho amarelo para conseguir o raio da consulta do dia para a Laura.