Bogdan Cristel / Reuters

Filha minha não chora!

Nasceu-me uma mãe. Foi preciso mais nove meses para me dar à luz. É que estava tão ocupada a cuidar da minha bebé que não me apercebi que estava grávida de mim.

Desta vez não fui à maternidade. O parto deu-se ao acordar, ontem de manhã: toda eu era mãe da cabeça aos pés. Não por causa do pijama bolsado, mas sim quando escutei a miúda a brincar sozinha e a palrar no berço sem chamar por mim. Como? Sem chamar por mim. Importa-se de repetir? Sem chamar pela mãe, eu!

Foi o quanto bastou para ficar presa nesta ofensa e despertar a tal mãe, acabadinha de nascer: “Eu sou a tua mãe, fui mãe, já sou mãe!”. Levanto-me e em dois segundos estou colada ao berço a dar ares de imprescindível a qualquer minutinho da “tua vida, bebé!”. Ela, olhos remelosos, sorriso desdentado, agarrada às grades, palra qualquer coisa. Como não percebo o que diz - pode até estar a chamar-me nomes feios, quero lá bem saber -, estou e vou conseguir dar conta do recado. 

Se depender de mim, se puder mandar, se for eu a escolher, se necessário até pagar, subornar ou mendigar, cá estarei para transformar esta bebé em menina e depois em mulher. E das felizes.

Com boa vontade tudo se cria, e mesmo ser lambuzada até às orelhas é aceitável - fecho os olhos e convenço-me de que a baba de bebé tem propriedades hidratantes. Como a baba de caracol. Redescobri que até sou boazinha e capaz, o que substitui anos e anos de terapia. A propósito, quero evitar que a miúda vá parar ao divã quando crescer. “A sua filha tem insónias porque você não afastou aquela mosca que rondava o berço quando ela era bebé”. Certo, 50 euros a consulta. “Vou comprar um mata-moscas e trato já disso, doutora”. Até as mato à palmada. 

Mas o que me enerva, como mãe que agora sou, é ouvi-la chorar. É um inferno. Não é tanto pela falta de paciência ou porque me cansa a cabeça. É porque chorar é sofrido. Mesmo quando o pranto é fingido, dá trabalho estar ali a fazer birra, a miúda tem de gemer, gritar e espernear, e ainda coordenar essa actuação com pausas para avaliar se a mãe – eu - está de ouvidos atentos. E, como se diz que a melhor forma de não ouvir o que nos incomoda é não ouvir, ela fica frustrada e começa a chorar de verdade.

Filha minha, não chora! Não porque tenha de ser forte, porque mulher não deva chorar ou porque não é mariquinhas pé-de-salsa. Só não quero que chore porque é minha filha. Cabe-me prevenir-lhe as lágrimas. Sendo a sua mãe, tomo-lhe as dores, junto-as às minhas e choro pelas duas. Confesso que gosto do sabor das lágrimas. Sabem-me a água das pedras mas sem limão. Pelo menos as minhas, pois não me recordo de ter provado lágrimas de outra pessoa.

“Chora, chora que faz bem", "quem não chora não mama", "chorar dá saúde e faz bem aos pulmões, alivia e lava a alma”. Li, assinalei a cruz no quadradinho do Concordo, mas passo. O meu instinto, os meus ouvidos, o meu coração e os meus vizinhos, dizem-me que não é assim tão bom deixar a bebé chorar. Nem tão disciplinador. Diz-se que chorar é a primeira ação humana, está certo. Mas primeira é isso mesmo, não é segunda nem terceira. Portanto, chorou quando nasceu e já está bem bom assim. 

Quem gosta de chorar ou ouvir chorar, que vá cortar cebolas, cheirar pimenta ou rebolar nas urtigas. Ou então junte-se a um desses clubes de choro, uma espécie de chorosos anónimos, que começam a surgir como solução para libertar o stress. São espaços onde as pessoas vão só para chorarem, em conjunto com desconhecidos, todos copiosos numa sala, com cebolas a dar o primeiro empurrão para quem chega a “seco” e precisa de se ambientar. Cá está uma experiência de chorar por mais.

Pari uma filha e uma mãe e um pedaço de madrasta e ainda uma estudiosa em maternagem. E vieram todas viver cá para casa comigo, logo eu, que sou aquela que tem pelo menos duas dentro de si. Assim de repente, são muitas mulheres para gerir. E o melhor é ir rindo, para não chorar.

 

Sofia Anjos, 38 anos, directora de contas numa agência de comunicação, foi mãe pela primeira vez em Maio.