Nelson Garrido

21 Candidatos, 7 Maravilhas Gastronómicas

Entre "fraldas" e rebanhos: Queijo da Serra

Carlos e Carmo não param. Têm que ordenhar um rebanho de 100 ovelhas duas vezes ao dia, fazer o queijo e o requeijão, acompanhar a cura, mudar "fraldinhas", tratar os cardos. Fazer queijo da Serra dá muito trabalho. Mas para eles é uma paixão.

Temos de reconhecer que não é fácil um casal instalar-se num hotel - mesmo que seja um turismo rural - acompanhado por um rebanho de ovelhas. Esta é a principal razão pela qual Carlos Lopes e a mulher, Maria do Carmo, não têm férias. O rebanho está ali nos campos, e os dois, para além de produtores de Queijo Serra da Estrela são pastores. O que significa muito trabalho.

Agora estamos no Verão e o ritmo de trabalho não é o mesmo. Ao final da manhã, quando chegamos à Quinta do Patarrego, em Germil, Penalva do Castelo, a calma é absoluta. O sol queima e conseguese ouvir o voo dos insectos. Na aldeia não se vê praticamente ninguém, mas as setas indicam o caminho para a queijaria.

As ovelhas têm que ser ordenhadas duas vezes ao dia, explica Carmo. "Às cinco, seis da manhã temos a primeira ordenha, depois lá para as cinco da tarde outra." Três horas de cada vez para ordenhar à mão as 100 ovelhas. Chegam a acabar os queijos do dia já perto da meia-noite. Produzir queijo da Serra "tem de ser um trabalho familiar e sem horários", conclui Carlos, que começou a fazer queijo há 24 anos, quase por curiosidade (a família era mais ligada às carnes), e que nunca mais largou. "Foi uma aventura... mas as coisas vão-se enraizando. Provavelmente não pensei que perdurasse tanto tempo."

A única familiar que sabia de queijos era uma tia, que tinha um rebanho. "Os primeiros passos foram com ela, e depois com os anos fui aperfeiçoando." Nesses tempos, antes da ASAE, os queijos eram fabricados em casa das pessoas. "Toda a gente fazia o queijo nas cozinhas", recorda Carlos. E nada de câmaras frigoríficas. "Dependíamos do chão de pedra para regular as temperaturas e a humidade, e as pessoas diziam 'Quero o queijo de Janeiro', que era o que tinha sido curado com baixas temperaturas e maior humidade." Ainda há clientes que dizem ter saudades desse ambiente, garante Maria do Carmo.

Muita coisa mudou, entretanto. Hoje não vamos poder ver o fabrico do queijo, porque nesta altura do ano não se faz queijo da Serra, mas Carlos e Carmo levam-nos a visitar a queijaria para explicar todo o processo. Já não é preciso ficar junto à lareira e mexer sempre o leite, pacientemente, até ele coagular. "Chegávamos a estar meio dia aqui a mexer." Agora têm uma cuba de coagulação que leva 100 litros (usam o leite do rebanho que têm e compram leite a outros pastores, para produzir por dia cerca de 30 quilos de queijo, na época que vai de Outubro a Junho) e demora uma hora.

Nos últimos dias, Carmo tem andado a aparar os cardos que estão lá fora - aqueles que têm uma cabecinha cheia de pelinhos entre o roxo e o azulado. É o cardo Cynara cardunculos, usado para coalhar o leite, e junto à cozinha há já uma caixa cheia dele. Só cresce nesta altura, por isso é preciso apanhar agora, secar "à sombra, como o chá", e guardar para o resto do ano. Vão-se tirando quantidades muito pequenas que se maceram num almofariz e, depois de coado, se junta ao leite, ao mesmo tempo que o sal. O queijo pode ser mais ou menos amargo consoante a quantidade de cardo - e há pequenas diferenças entre os vários produtores.

Lado artesanal

Quando o queijo sai da cuba, é colocado numa forma onde é espremido com as mãos para fazer sair todo o soro, que há-de ser aproveitado para fazer requeijão. Antigamente havia o zinxo, um anel metálico com furinhos, dentro do qual o queijeiro ia apertando o queijo. No final, este levava um último aperto com uma prensa feita com uma pedra. Agora a forma é de fibra e a prensa é uma máquina colocada na parede. Mas o trabalho das mãos do queijeiro não desapareceu -e todo esse lado artesanal é essencial no fabrico do serra da Estrela.

O soro é retirado e aquecido, enquanto se mexe sem parar. Quando a nata vem ao de cima, tira-se com a escumadeira e põe-se num cestinho. Os cestinhos de vime que Carlos e Carmo usavam já não são permitidos, por isso fizeram um a imitar o vime, mas de plástico - só que nem o escoamento é tão rápido, nem os clientes gostam tanto, dizem.

Passamos para a sala seguinte, a primeira câmara de cura, onde os queijos ficam cerca de 15 dias a uma temperatura entre os sete e os nove graus. Já ninguém pede o "queijo de Janeiro" - "Agora temos Janeiro todo o ano, aqui dentro", diz Carlos. O que não se consegue é reproduzir Janeiro lá fora em pleno mês de Agosto e é por isso, porque "o leite anda dentro dos animais a temperaturas mais altas" e sofre alterações, que nesta altura não se faz queijo. "O animal anda no exterior, no monte, não podemos mantê-lo no frio", explica o queijeiro, sorrindo.

Ao fim de 12 ou 13 dias faz-se a primeira lavagem do queijo. "Como não tem químicos nem isolantes, tem de se combater os fungos com a lavagem." Dentro da câmara de cura estão já poucos queijos, porque têm vindo a ser vendidos. Passamos para uma segunda câmara de cura, temperatura baixa, um friozinho a entrar-nos pelos ossos. Lá estão mais queijos, sempre com uma faixa de pano branco à volta. "Os antigos diziam que o queijo é como os bebés, tem que ter sempre fraldinhas enxutas."

E aqui ficam, sobre grelhas, "pelo menos 45 dias, não se consegue fazer a cura antes", sempre com Carlos e Carmo a mudar-lhes "as fraldinhas". Isto, se se quiser o Serra amanteigado, porque para o Serra da Estrela velho é necessária uma cura de pelo menos 120 dias. Enquanto isso, o requeijão vai saindo todos os dias. "É um produto diário", afirma Carmo. Chegam a ter clientes à espera que fique pronto e alguns comem-no logo ali.

Não há quem não conheça a fama do queijo Serra da Estrela. Mas isso não é suficiente, diz Carlos Lopes. É que os supermercados enchem-se de produtos que se apresentam com nomes semelhantes, mas que não são o genuíno, o de Denominação de Origem Protegida (DOP). Para reconhecer o verdadeiro é preciso estar atento ao selo que aparece, discretamente, no rótulo.

"A indústria faz queijo de ovelha, mas usa qualquer raça." Para que o queijo Serra da Estrela seja certificado, o produtor tem que usar ovelhas de raça Bordaleira Serra da Estrela ou Churra Mondegueira. São da primeira raça as ovelhas que Carlos e Carmo têm no campo, mas "é uma raça que nem toda a gente quer usar, porque não dá nem um terço da quantidade de leite das outras". A diferença está precisamente na qualidade. Nos últimos anos foram chegando à Serra outras raças, vindas de França, que "produzem mais, mas de qualidade inferior".

Fiscalização

Os rebanhos são fiscalizados e basta haver uma ovelha que não seja da raça para que o leite já não possa ser usado para fazer Queijo Serra da Estrela. O processo é exigente, desde os testes às ovelhas até à prova final por um painel de provadores - e Carlos só lamenta que depois não haja uma promoção como deve ser deste queijo, e não seja feito um maior esforço para o divulgar no estrangeiro. "Não se vê publicidade ao queijo. Precisamos de divulgação, de comercialização."

Seria bom, para compensar as exigências todas, as muitas horas a trabalhar, o não ter férias. Se não compensar, não surgem novos produtores. "Eu tenho 47 anos e sou dos mais novos aqui na zona." Tem ouvido os políticos a dizer que é preciso voltar a trabalhar a terra, mas o que vê é que "vão estudar agricultura mas depois querem um emprego num escritório e não se vê ninguém a pegar num tractor". Passamos para a cozinha, e Carmo vai buscar pão e uma faca para abrir um queijo. Não se deve abrir por cima, como quem tira uma tampa, explica, porque o queijo deve poder ser virado algumas vezes. Eles pelo menos nunca o comem à colher. "O queijo é para ser comido com faca." Mesmo que, como este que acabámos de abrir, se espalhe sobre a tábua de madeira, formando uma irresistível barriguinha amarela amanteigada.

A agricultura, estava a dizer Carlos, "não é estar sentado à secretária com ar condicionado". E é um facto: os hotéis ainda não aceitam reservas para um casal mais rebanho. Mas ver o queijo sair assim, perfeito, na consistência, na cor e no sabor, compensa muita coisa.